quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O inominável

Publicada n'O Taquaryense em 13 de novembro de 2004.

Prezado Fidel, depois de te falar sobre o olho, aqui por essas mal traçadas, tive a impressão de haver sido superficial e que haveria muito mais a dizer sobre o olhar e a visão. E deve haver, só que meu pensamento divagou, associou, uma coisa leva à outra e o assunto de hoje pode ter algo a ver com olho, mas não exatamente com a visão.

Quero te falar sobre um monossílabo muito injustiçado no nosso país. Pessoalmente não me escandalizo, mas há um bruto preconceito contra ele. Temendo ferir ouvidos mais sensíveis, evito pronunciá-lo. Falo daquela coisa que, tal como CD, representa algo que começa por C, é redondo, tem duas letras e um buraco no meio. Vou chamá-lo, então, de “o inominável”.

Vê que eu digo em nosso país e não em nossa língua, pois na terra dos avós goza da maior liberdade, para não dizer prestígio. O maior exemplo é a letra Q, que eles pronunciam como o inominável. Nosso herói freqüenta as rodas de conversa lusitanas com toda a naturalidade. Como ensina Mário Prata, no livro sobre sua vida portuguesa, “vou levar o puto para tomar uma pica no inominável” quer dizer “vou levar o guri para tomar uma injeção nas nádegas”.

Na academia, o inominável aparece como sigla de colite ulcerosa em artigos científicos d’além mar, sem o menor pudor. Em sociedade, é comum dizer à visita que chega: “sente seu inominável por aí”, mostrando alguma poltrona. Até o (suponho) vetusto Tribunal da Relação de Lisboa, em seus acórdãos, usa acintosamente o inominável como código (vide processo 9337/2004-8) e transcreve declarações de um réu que sugere a um agente público depositar certo cartão no inominável (processo 640/2004-3).

No blog português Pandora’s Box eu encontrei o anúncio da criação de um certo Cadastro Único, abreviado podes imaginar como, que livraria os portugueses de decorar uma série de números de documentos. O inominável teria 1001 utilidades. Por exemplo, um gerente de banco diria ao cliente que pede empréstimo: “vou ver o seu inominável” (para certificar-se de que o requerente não tem o inominável sujo). O vendedor diria: “Ponho no seu inominável?” ao emitir o boleto de compra.

Mas, claro, Fidelito, que isso é piada dos blogueiros. E se tu não sabes o que é blog, é uma espécie de porta de banheiro cibernética em que todo mundo rabisca. Um muro na internet para todo mundo pichar. Um inominável-da-mãe-joana.

Aqui entre nós, até que o inominável tem uma tímida licença, mas só em uns poucos vocábulos e expressões. Ele ali se mete tal qual um penetra numa festa chique, que não é posto para fora porque, afinal, é simpático e a defenestração poderia ser mais escandalosa do que a presença indevida.

Por exemplo, quem é um estudioso aplicado é chamado inominável-de-ferro, ou cê-dê-efe. Uma coisa na qual todos se metem é referido como inominável-da-mãe-joana, como é o caso dos blogs que eu falei. Um sururu, furdunço, conflito no qual se envolvem várias pessoas é chamado inominável-de-gato.

As aparições do inominável são tão numerosas que eu cansei. Antes de te falar mais sobre o currículo dele, vou fazer uma sesta e volto na próxima, pois o assuntinho rendeu.

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