terça-feira, 31 de março de 2009

Lá vamos nós, outra vez

Publicada n'O Taquaryense em 29 de julho de 2006.

Caro Fidel, a campanha ainda não começou quando escrevo estas mal traçadas, mas não tenho medo de errar ao dizer como vai ser mais uma emocionante corrida eleitoral. Por favor, Fidelito, chega de xingar os deputados e botar a culpa neles por tudo de ruim que há neste país. Eles são uma parte da ruindade, mas não têm competência para fazer a encrenca sozinhos.

Nosso presidente, quando não o era, disse que na Câmara Federal há “300 picaretas com anel de doutor”. Muita gente se assombrou com o cálculo conservador. E eu digo que o problema não é ter ou não ter o anel de doutor.

É que um criminoso tem todo o interesse e toda a vantagem em candidatar-se. Um cidadão honesto, não. Se há cidadãos honrados na Câmara, e os há, são desse tipo de gente tenaz que se dispõe a nadar contra a corrente.

Senão, vejamos. O salário é baixo. Detesto admitir que o Severino Cavalcanti tinha razão nesse ponto. Porém, se o deputado for trambiqueiro, pode aumentar o rancho roubando boa parte do salário de seus trocentos aspones oficiais, que ele tem o direito de contratar.

Para um candidato a deputado, ter um currículo brilhante não chega a ser crime... Só que crimes na ficha corrida são um incentivo muito melhor para quem quer um mandato e a conseqüente im(p)unidade parlamentar. Simples.

E o bom de tudo isso é que a campanha nivela o currículo brilhante à ficha corrida horripilante. Daqui até outubro, temos que escolher um da penca de candidatos a granel com base em foto e musiquinha. Não dá para saber o currículo, a ficha corrida e o psicotécnico, portanto temos grande chance de eleger um burro (todavia esperto), bandido ou maluco. Ou pior, ainda: “Todas as alternativas anteriores”.

É... não há como saber. Sabe como é... Estamos em 2006; ainda não inventaram a internet. Além disso, se existisse a internet, seria muito caro publicar. Caríssimo. Mais caro que fazer boné. Ah, se houvesse um jeito de saber...

Observa, Fidelito, que os políticos fogem, como vampiro de crucifixo, de qualquer possibilidade de esclarecer quem realmente são. Isso não lhes interessa. Tanto que, se têm bastante dinheiro para a campanha, investem em coisas estúpidas-descerebradas como showmício. Tudo para evitar que o povo pense, tudo para que continue sendo um gadinho fácil de enganar.

Para não cometer injustiça, Fidelito, passeei por alguns sítios de partidos na web. Tem fotos, jingles, informativos partidários, peças publicitárias, brindes do partido para levantar fundos, mas... nada de dizer todos os lugares em que cada mandatário e cada candidato estudou e trabalhou (com telefone e e-mail, claro), se foi processado ou preso e por qual motivo...

Alguns partidos chegam a dar os e-mails e telefones de deputados. Há até os que apontam para a página do deputado no sítio na Câmara dos Deputados. Lá existe uma “Biografia” com alguma informação. Claro que eles escolhem os melhores ângulos para se apresentar. Vou te contar, Fidel: todos são “Gisele Bínchem”.

Mas não é bem isso que eu quero, Fidelito. Como se fosse buscar um auxiliar numa agência de emprego, eu quero um “menu”. Quero ver se os candidatos são empresários, administradores, se foram pobres, se são ricos, de onde veio a fortuna... Daí vou poder dizer que há escolha.

sábado, 28 de março de 2009

Tem que ser macho

Publicada n'O Taquaryense em 1 de julho de 2006.

Fidel, quero falar mais sobre o Sobril, o país fictício de nome inspirado no sobro, uma corticeira que havia em sua costa. Mais ou menos o oposto do Brasil, já que o pau-brasil é incorruptível e duro, segundo o Aurélio.

Pois no Sobril há uma gente nostálgica que se apoquenta com a decadência dos costumes. Eles dizem coisas como “é o fim”, “não tem mais home no Sobril”, “no meu tempo, fio de bigode valia como contrato; hoje, nem papel reconhecido em cartório põe limite nos velhacos”.

Cá para nós, Fidelito, eu acho meio esquisito esse papo de “ser home”, pois honestidade e caráter não têm gênero. Mas, que seja. Vou contar uma história de macheza que recentemente impressionou os cidadãos do Sobril.

O presidente, de origem octária, era querido pelo octariado (que é como eles chamam o povo). Mas a casa começou a cair quando um chupim governamental de n-ésimo escalão apareceu na TV embolsando dinheiro e dizendo que era fácil roubar. O chupim virou caranguejo – um ladrão foi fazendo aparecer outro, e outro, e outro... Não que tenham puxado todos os ladrões, digo, caranguejos do balde, mas foi um montão.

Lá pelas tantas, Fidelito, já não tinha balde para caber tanto caranguejo: era amigo, era parente, era nego carregando dinheiro na cueca, até adversário político – a coisa ficou perigosa, os mais afoitos já gritavam que todo mundo era caranguejo. Mas não era nada disso, porque todos esses caranguejos aí traíram ele – o presidente, que não sabia de nada (este parágrafo se presta a leituras dramáticas com várias entonações, especialmente neste final).

Mas, calma, que eu chego na história de macheza. O negócio continuou, caranguejo enganchado em caranguejo, até que apareceu um crustáceo grande, que não se esperava: o zagueiro-central do time do presidente. O sujeito da retaguarda, uma espécie de Figueroa, para quem é mais antigo (não existem exemplos atuais; se eu falar nos irmãos Pontes do Gaúcho de Passo Fundo, é a mesma antiguidade).

Pois o becão do governo sobrileiro fora visto e revisto numa casa de tolerância da capital do país – casa essa que era um laboratório de pesquisa em sacanagem. Sabes como é, Fidel? Lá eles desenvolviam e experimentavam novos tipos de sacanagem da braba. Tecnologia de ponta, mas era coisa que dava cadeia.

Vai daí que o caseiro da casa de tolerância viu nosso herói muitas vezes lá, e foi chamado a dar testemunho frente aos nobres representantes do povo sobrileiro. Era para dizer se viu mesmo o zagueirão lá, quantas vezes, com quem, que tipo de sacanagem fazia...

Mas eis que se levanta um membro (ops!) do Judiciário sobrileiro para salvar nosso herói. Com a mais esfarrapada das desculpas, o desembargador exarou (Fidelito, é estranho como soa este verbo; posso ver os magistrados gracejando: ‘- Que crime hediondo! Vossa excelência exarou? - Eu não! Quem exarou foi vossa excelência, que falou’) que o caseiro não iria falar porque era ignorante, e caso encerrado.

Cabra macho! Ou eu não entendi, Fidel, ou ele chamou o presidente de burro, pois o caseiro era até mais instruído que o presidente. E ainda por cima caçoou dos seus colegas ingênuos que se preocupam em zelar pela própria reputação. Dar uma sentença estapafúrdia e ainda sugerir que o presidente devia calar a boca? Ala fresca! Mas que baita macho!

quarta-feira, 25 de março de 2009

Me dá meu boné

Publicada n'O Taquaryense em 24 de junho de 2006.

Fidel, de vez em quando algum objeto fica famoso no Brasil e só se fala nele. Já foram: foguete, (boquinha da) garrafa, cueca... Agora é a vez do boné, que já era imortal na voz da Clementina de Jesus: “Me dá meu boné que eu já vou-me embora, porque brincadeira tem hora”.

Pois o Congresso Nacional, fustigado por tanta corrupção, buscando eleger alguém (“El malo”) que pudesse assumir e purgar os pecados atuais (os roubos de PIB dos últimos 500 anos a gente já dá por perdidos), elegeu o boné. Faz sentido, pois uma pessoa, por mais ladrão de carteirinha que fosse, jamais conseguiria chupar para si toda a culpa, fazendo os demais parecerem honestos. Demonizaram o boné, então.

Decidiram que o caixa 2 das campanhas políticas existe porque precisa ter dinheiro para fazer boné de candidato. Sem boné, caixa 2 never again. Mas sempre tem um descontente, né Fidel? O pessoal que faz boné detestou a idéia.

Outro dia ouvi uma entrevista no rádio que me deu dó. Evito nomes reais para não ficar chato. O entrevistador era um jornalista que me apraz ouvir, chamado, digamos, Hétero Cabeleireiro. O entrevistado era um senhor que faz boné, chamado, digamos, seu Zé do Boné.

Deu pena porque seu Zé tentava argumentar contra o recente veto à distribuição de bonés e outros brindes pelos candidatos. Só que se enrolou ao dizer que dar brinde não é comprar voto, mas que o boné é uma peça de mídia. Só que anúncio em outdoor, TV e rádio também são. Como o espírito da lei é evitar o abuso do poder econômico, Zé do Boné deu um tiro no pé.

Havia outras estratégias. Ele podia apontar a arrogância dos puderes constituídos no Brasil, que não se envergonham de mudar uma regra da noite para o dia em vez de valer para a próxima eleição (outra suprema arrogância é cobrar imposto de renda no último dia do mês e dane-se quem mais paga, o assalariado, que recebe no início; mas essa é outra história).

Ou, então, seu Zé poderia botar o boné de cidadão brasileiro e aproveitar para propor uma troca. Para compensar que os empresários e trabalhadores da indústria do boné vão passar fome, os senhores candidatos seriam obrigados a publicar sua ficha corrida, psicotécnico e referências de cada lugar que passou, desde o jardim de infância. O currículo completo.

Tudo na internet; quem omitir algo fica inelegível ou perde o mandato. Tem que ter o nome, endereço e telefone da professora primária, dos colegas de escola, dos chefes, colegas e subordinados. Assim, nós poderíamos escolher um candidato, o que é impossível no atual sistema blablablá-e-musiquinha.

Já pensaste, Fidel? “Alô, dona Solange? Por que é que as notas do candidato Asdrúbal eram tão baixas?” “Ooo queee? O deputado Mamute era lotado aí mas só tomava cafezinho e trazia atestado? Não admira que falte às sessões da Câmara!” “Quer dizer que o candidato Paramécio foi pra rua porque roubou no caixa? Aham...” “É mesmo, seu Souza? O candidato Helminto levou para casa a máquina autenticadora e distribuiu 500 carnês de IPTU ‘pagos’? Radical! Por isso faz tanto voto!” “Washington, o doutor é advogado de quantos traficantes, mesmo?”

Se for assim, Fidelito, eu até topo financiamento público de campanha. Pago com convicção. Senão, me dá meu boné que eu já vou-me embora, porque brincadeira tem hora.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Não me resgatem a cidadania

Publicada n'O Taquaryense em 27 de maio de 2006.

Caro Fidel, não deixa jamais que me resgatem a cidadania. Olha dona Guilhermina: pessoa fina, amabilíssima – até o dia em que tentaram resgatar a dela. De família culta, professora de português, membro da academia estadual de letras, poeta, empresária, negra, socialite, elegante. Andava de bengala (recuperava-se de um acidente com seu Volvo automático).

Num desses dias, sem poder dirigir, saiu de táxi. Na volta, quis andar um pouco, para espairecer. Por azar, enfiou o salto do sapato numa fresta dessas feitas pelo Departamento Municipal de Avacalhação Urbana (DMAU). Quebrou o salto do pé esquerdo, o da perna machucada.

Força na bengala! Só que, mal sustentado pela bengala, empurrado pela perna direita, o corpo se inclinava perigosamente ainda mais para a esquerda, onde não havia ponto de apoio, mas só e apenas uma grande cratera junto ao meio-fio (aberta, provavelmente, pelo mesmo DMAU).

Havia água da chuva no big buraco, mas era só o excipiente, digamos assim. A essência daquele xarope era o esgoto doméstico que, por economia de algum talentoso construtor, compartilhava dutos com o esgoto pluvial. Fedia.

Guilhermina requebrou num movimento gracioso e deu um arrojado salto com bengala em semi-parábola, em trajetória balística digna de questão de vestibular. Seu corpo estatelou-se no fundo da cratera, em decúbito dorsal, atolado numa nojeira marrom.

Um pedestre se apressou a acudir e soerguer Dona Guilhermina, com a ajuda de um taxista. Molhada, a blusa de seda esvoaçante colou no corpo e deu à vítima um jeitão de meretriz decadente, agravado pela maquiagem que escorria. Logo juntou gente – mais para peruar do que para ajudar, como é comum.

Guilhermina tossia e resfolegava quando surgiu Ana Cândida Wölfenbüttelmeister, ativista feminista onguista – dessas ongues, sabes Fidel? “Aninha” para os correligionários, “Bruxa” ou “Peste” para os (muitos) desafetos.

Aninha não viu nada, mas concluiu e passou a grasnar que os cavalheiros que amparavam Dona Guilhermina a estavam abusando “enquanto mulher”, que ia “estar chamando” a polícia, que aquilo era “um problema a nível de violência contra minorias, por ser mulher, negra, idosa, deficiente e prostituta”. Dona Guilhermina, a princípio perplexa, foi envermelhando de raiva.

Piorou quando chegaram policiais e, aos latidos de Aninha, desceram o cacete nos pobres ajudantes. A acidentada tentou defendê-los, mas só conseguiu tossir. Aninha seguiu cacarejando no gerúndio e arrastou a contundida pelo braço, dizendo: “Vou fazer uma colocação: vou estar resgatando sua cidadania”.

Nesse movimento, Aninha bafejou seu hálito de múmia e, suprema imprudência, expôs o pescoço. Possuída de ódio, a benigna empresária atacou a goela da onguista, esganando-a até arroxear e gritando: “Não me resgata a cidadania! Não me resgata a cidadania!”.

Aninha chegou a desfalecer. Custou 10 minutos de luta corporal para que os policiais conseguissem deter Dona Guilhermina e prendê-la por agressão, desacato e resistência à prisão.

Ela e Aninha passam bem. Com a intervenção de advogado, padre e prefeito, Dona Guilhermina pôde deixar a cela insalubre, com mil desculpas do delegado. Foi escoltada em alto estilo até sua casa. Resgataram-lhe a cidadania.

Dois baixinhos atarracados

Publicada n'O Taquaryense em 20 de maio de 2006.

Caro Fidel, algumas figuras que fazem boa fama conseguem mantê-la intacta para a posteridade. São os que morrem cedo. Não dá tempo de mostrar as mazelas do ser humano.

Carlos Gardel (canta cada vez melhor), Ayrton Senna (supercampeão e filantropo). Mas alguns não morrem cedo e expõem fraquezas: Pelé, que negou e renegou a filha que é o seu focinho; Emerson Fittipaldi, que foi salvo do acidente de ultraleve de graça, pelos bombeiros, e fez propaganda para um plano de saúde, com helicóptero, inventando um resgate inexistente.

Emerson esqueceu que foram os bombeiros, esqueceu que se arriscaram, que um perdeu um pé de bota e uma farda na operação de salvamento, que quinze viaturas participaram do resgate. São erros, maracutaias, trapaças, humanidades.

Os heróis às vezes abusam. A fama mingua, mas não some – sempre restam fãs que os elevam a ídolos. Todavia, os fatos criam uma imagem sinistra na cabeça de qualquer pessoa que admita uma análise racional da coisa.

Quero falar, por estas mal-traçadas, de dois baixinhos atarracados, amados pelo povo, que suicidaram a fama jogando-a do alto da vaidade. Um é argentino e encantou o mundo com seu talento futebolístico. Um grande artista; nem precisaria dizer que se chama Maradona.

Não bastasse a sacanagem do gol de mão contra a Inglaterra, na Copa de 1986, que ele atribuiu à “mão de Deus”, o baixinho teve um ataque de sinceridade que nivelou a estatura moral à estatura física. Era um programa de TV com vários marmanjos dizendo besteira (típico...).

Lá pelas tantas, Maradona contou que tinha tranqüilizante a água oferecida a Branco, lateral e competente cobrador de faltas, no jogo contra o Brasil na Copa de 1990. A mentoria do crime é atribuída ao técnico Carlos Bilardo. Mas, ao rir às gargalhadas com todos os participantes do programa, deu um recado inequívoco aos argentinos: “somos espertos”.

Como fica a cabeça do garoto argentino que vê o maior herói nacional vivo declarar que, para vencer, é preciso, justo, ou até bacana trapacear? Que espécie de perversão é preciso construir nas cabecinhas para vencer essa dissonância cognitiva? (Pois papá, mamá, abuelo y abuela sempre disseram que trapacear é feio).

Vamos ao outro. Esse é brasileiro, de origem muito humilde, como o argentino. Porém, diferente do argentino, levou 20 anos para que fosse aceito pela maioria. De tanto persistir.

Perdeu 3 eleições para presidente. Na primeira, insistiu na campanha limpa apesar das vulnerabilidades do oponente no campo das drogas e do catatau de mentiras – as mais importantes desmascaradas na TV, em horário nobre – plantadas pelo comitê do oponente.

Hoje eleito e em pleno mandato, quando começou a ficar claro que as práticas de seu governo são iguais ou piores do que as de antes, nosso presidente fez de conta de que não era com ele. E pisou na bola de verdade ao afirmar que ninguém tem mais autoridade moral e ética do que ele para combater a corrupção.

O aparelhamento partidário de empresas públicas, com companheiros sem a competência dos especialistas que substituíram, o negócio para lá de estranho do filho, o dinheiro em cuecas, jatinhos etc. no caminho do bolso de deputados... isso são fatos. Vociferar em favor próprio é bravata de baixinho invocado.

segunda-feira, 16 de março de 2009

O Rio Grande rumo às trevas

Publicada n'O Taquaryense em 25 de março de 2006.

Fidel, no ano passado eu falei sobre o campeonato de futebol do Sobril Meridional, um estado do fictício Sobril, país cuja bandeira ostenta o mote “Com jeito vai” escrito sobre uma banana. Por causa de um atentado à língua perpetrado no regulamento do campeonato, não deram o título ao legítimo campeão, o XXX de Fevereiro, mas ao Multinacional.

Tudo no Sobril é parecido com o Brasil, só que diferente. Eu achei que seria divertido inventar essa história para contar um causo real. E não é que eles fizeram de novo? Agora eu me obrigo a falar do Brasil, mesmo, e do Rio Grande do Sul e seu campeonato de futebol.

Na verdade, leitor não afeito ao esporte bretão, o assunto não é futebol, mas educação – a parte que se ensina na escola. No ano passado, não deram a taça ao legítimo campeão gaúcho, o XV de Novembro de Campo Bom, porque o regulamento não fazia sentido e estava escrito num “português” (entre aspas para não ofender a língua pátria) tão esdrúxulo que o XV desistiu.

Bueno, fizeram de novo. Eu gostaria de estar errado, Fidelito. Quem sabe o regulamento legítimo foi violado por um terrorista da língua, que esparramou vírgulas como quem joga milho às galinhas. Porém, temo estar certo.

Não são só as vírgulas. A lógica e o encadeamento de idéias são tão tortos que custaria um grande poeta para inventar algo tão ruim, se quisesse. É ruindade natural. Está lá, no sítio da Federação Gaúcha de Futebol.

O Rio Grande do Sul foi o primeiro estado do Brasil a ter escola. Costumava ser referência nacional em educação – melhor do que o centro do país e muito melhor do que o Norte, Nordeste ou Centro-Oeste. Gerou poetas e romancistas importantes, mas finalmente encontrou, ao que parece, sua vocação: o analfabetismo funcional.

Volto ao Sobril, Fidel: contei da visita, no ano passado, a Cais Jovial, leal e valerosa capital do estado sulista. Falei do meu pasmo ao circular pelo bairro Cidade de Pedra e ver placas de “sentido obrigatório à esquerda” onde deveria ser “proibido virar à direita”.

Só que eu não sabia que a estupidez sinalizatória estava espalhada por toda a cidade. Perdi a capacidade de contar fábulas: era Porto Alegre, mesmo. Era Petrópolis. E me apavorei mais um pouco quando andei por algumas cidades do interior e constatei que a moda lá chegou. São placas de trânsito que comandam os gaúchos ao suicídio, pois, em avenidas largas, elas dizem: “na próxima esquina, tu és obrigado a virar à esquerda, mesmo que tenhas que te atravessar na frente de um ônibus lotado, um caminhão e um fusca, porque eu tô mandando”.

É engraçado, Fidelito. Eu conheço gaúchos cultos. Alguns até lêem livros. Há, entre os políticos, vários intelectuais. Há, entre os professores e até estudantes, vários que conseguem formar uma frase com sujeito, verbo e complemento, com concordâncias acertadas e regências apropriadas. Porém, hoje estou desanimado, com a impressão de que todo mundo foi aluno do professor Tapir Hirsuto.

Daí, dá uma gastura, uma dor no estrombo, uma vontade de comer melancia com uva até perdê a indentidade e batê as bota. E pra não dizê imporpérios, palavras de baixo escalão, pra não estrupar mais a língua portugueza, vou escolher umas palavras menas grávidas para mim berrar até se esgüelar: NÓIS TEM POBREMA!

sexta-feira, 13 de março de 2009

Balela, mais balela

Publicada n'O Taquaryense em 28 de janeiro de 2006.

Caro Fidel, já vai longe o referendo da proibição do comércio de armas e munições, mas ainda sobrou assunto. Falou-se muito de violência e, realmente, a razão saiu estropiada pela mistificação e pela musiquinha.

Muitos chamaram de “Referendo do Desarmamento”, embora não se estivesse votando pelo desarmamento. Mas era referendo justamente porque a proibição já estava no Estatuto do Desarmamento, com a ressalva de que o povo deveria referendar (não referendou).

Só que o próprio Estatuto já garante a várias categorias o direito a não apenas possuir, mas também portar armas (como, se não pode comprar?). Uma loucura. Um festival de bobagens quase tão absurdo quanto o regulamento do último campeonato gaúcho de futebol (mas sem tantos erros de português, reconheçamos).

Lá se foram 270 milhões de reais num referendo fadado a dar em nada, mesmo que vencesse o “Sim”. Em eleições comuns, pelo menos, a frustração por ver eleitos vários criminosos e malas-sem-alça é balanceada pela diversão. Um candidato xinga o outro e o povo se diverte. Aparecem os candidatos mais esquisitos e o povo se diverte.

Nesse referendo, não. Foi só chateação. E, além dos revólveres e espingardas, continuamos a conviver com o porte de todo tipo de arma pelos tipos mais inescrupulosos. Se, por um lado, uma espingarda pode servir não à violência mas à defesa, por outro lado há coisas feitas para a paz, mas que se transformam em arma pelo abuso do portador.

Olha o exemplo do pintor de placas de trânsito da cidade de Porto Alegre, Fidel: o pincel desse sujeito já matou a lógica, ao confundir “proibido dobrar à direita” com “sentido obrigatório à esquerda”. Se os motoristas porto-alegrenses obedecerem a sinalização, aí sim haverá mortes a rodo, pois em muitos casos a placa manda atravessar a pista contrária, cortando a frente de quem vem no outro sentido. Então são duas violências: contra a lógica e contra a integridade física.

Para não falar só de armas letais, citemos algumas de dano moral. A língua do nosso presidente da república, por exemplo, que confunde tatame com tapume, jura solidariedade ao Roberto Jefferson, louva o “nosso Delúbio” e diz que caixa 2 não é tão feio, sem falar no tradicional assassínio da língua portuguesa.

As declarações do presidente dificilmente matam, mas causam alguma confusão e nos dão vergonha. Ele, e quem sabe mais uma série de outras figuras, poderiam ter a língua interditada a bem do interesse comum, para evitar o incômodo, a moléstia causada aos cidadãos. Não é isso que chamam de dano moral?

Outra arma que poderia muito bem ser proibida é qualquer fonte sonora na mão de cretinos mal-educados e arrogantes. Certo, concordo contigo, não é simples determinar quem é cretino mal-educado e arrogante, pois quem é acha que não é. Mas arrisco que, quanto ao meu vizinho, todos concordariam que a cretinice é berrante e bem documentada pela Polícia Militar. Enfim, Fidelito, poderíamos ir longe com a lista. O leitor certamente gostaria de proibir algumas armas. Duro é que uns pilantras só entendem porrada. Violência não é a resposta, mas às vezes pode ser um bom palpite.

Não vem com essa

Publicada n'O Taquaryense em 21 de janeiro de 2006.

Caro Fidel, se tu não sabias, andar de bicicleta, falar outra língua, ser pai, mãe, chefe, professor, imitar pum com o sovaco, adolescer, tocar maraca e tudo o que requer aprendizagem precisa do erro. Fazer tudo perfeito não é humano. E eu já estou perdendo a paciência, não agüento mais tanta gente – velha, inclusive – dizendo que 2005 foi um ano que deu vergonha de ser brasileiro.

Não vem com essa. Em 2005 descobriu-se (para quem não sabia - alô-ouuu...) que as campanhas políticas são pagas pelo caixa 2. Que aspones laranjas sacam dinheiro para seus chefes movimentarem o comércio de deputados - se preciso for, carregando pila até na cueca.

Que autoridades ordenham detentores de concessões públicas, criando dificuldades para vender facilidades. Veja-se o caso do paladino do atraso, o presidente impichado da Câmara Federal, a chupar um mensalinho do dono do restaurante da Câmara, aquele da linda esposa, senão cancelava a concessão.

Que, mesmo que tenha aperfeiçoado muito o sistema, o atual governo não o inventou - é tudo parecido com o que fizeram governos anteriores, embora alguns vetustos senhores caras-de-pau vociferem pela moral e bons costumes. Que quem rouba muito não vai para a cadeia, mas quem aponta um ladrão pode ir – vide os cineastas-arapongas que filmaram o chupim Maurício dos Correios, ladrãozinho que só numa embolsada vista na TV chupou o que alguns trabalhadores jamais conseguem juntar.

Que 25 mil cargos de confiança para lotear entre os correligionários é fermento para a corrupção, mas não se acaba com isso porque é do interesse de todos os políticos equívocos – e os há em número suficiente para deixar tudo na mesma. Que é balela que não há dinheiro para aumentar o salário mínimo – há, mas os bilhões e bilhões da corrupção são intocáveis. Que é lorota que os governadores querem diminuir a sonegação – isso diminuiria o lucro dos amigos que os financiam; seria trair os amigos.

Que, afinal, valeu a pena toda aquela briga dos deputados para aumentar o número mínimo de vereadores por cidade de 7 para 9. Porque, nesse esquema-pirâmide da perversão, criaram-se 10 ou 11 mil cargos de vereador a mais. Nessa AmUei da perversão – sabe a AmUei? – os novos vereadores aumentam a rede de troca de favores dos seus padrinhos políticos.

Em 2005, vimos o resultado daquela briga vencida pelos apóstolos das trevas, que aumentaram o número de vereadores. Que nem no marketing multi-nível – nome bacana, né Fidelito? –, o bagrinho faz parte da rede do bagrinho um pouco maior, este de outro um pouco maior, até chegar ao tubarão. Cada bagrinho na rede aumenta a influência do padrinho ou upline, como se diz em linguagem marketeira.

E já viste, Fidelito? Quem está no topo da pirâmide gosta de ser passivo, provocando ou cedendo sofregamente aos avanços dos corruptos ativos. Foi o caso do restaurante da Câmara: Severino, passivo, Buani, ativo. Acho que tem a ver com o talento do segundo para conquistar aquela morena maravilhosa que o acompanhava.

Se tu não achas tudo isso motivo de orgulho de ser brasileiro, Fidelito, o que eu vou fazer? Azar de quem prefere a ignorância, pois nunca soubemos tanto quanto agora. Vergonha é roubar e não poder carregar na cueca.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Previsões para 2005

Publicada n'O Taquaryense em 14 de janeiro de 2006.

Caro Fidel, nesta época do ano Pai Mário abre o cafofo para fazer previsões infalíveis sobre o ano passado. À guisa de búzios, rolhas de espumante (Pai Mário prestigia a produção nacional; bebe espumante e não champagne).

Grassam na imprensa grande e mais afeita a iludir do que a informar as reportagens com previsões baratas. Aqui não. O negócio é sério. Podem me cobrar as previsões depois. Qualquer semelhança dos personagens das previsões com pessoas ou organizações terá sido mera coincidência (na verdade, isso é só uma frase de efeito para tentar evitar processos).

2005 evoluirá sob o signo de um pássaro e da filosofia rodriguiana – Nelson Rodrigues disse que o subdesenvolvimento não se improvisa. Assim será. Todo o esforço será feito por governo e oposição para que o país ande para trás. Contudo, como eles não fazem nada direito, algumas coisas andarão para frente.

O pássaro do ano será o chupim. Na primeira metade do ano, um chupim funcionário público será filmado embolsando propina e contando vantagem. Porém, como 2005 é o ano do chupim e o chefe dele não vê TV, pasme, ele não perderá o emprego. Quem irá preso será o cameraman.

Só que um deputado que vê TV, cuja graça homenageia um pai da pátria norte-americana, será implicado. Para não deixar só o seu (bico) na reta, piará. No gorjeio, jogará tudo no ventilador: careca, outros deputados à toa, tesoureiro, primeiro-ministro, presidente.

Tem mais, Fidelito: secretária, laranjas, roubo de empresas públicas, presentes caríssimos... Mais não conto porque não cabe nestas mal traçadas. Só esperando para ver.

O governo federal implantará a política “sorvete na testa”. Primeiro, fiando-se na tradição de que o partido de maior bancada elege o presidente da Câmara dos Deputados, tentará impingir um cujo nome ninguém consegue pronunciar. O plenário, em resposta à ofensa léxica, levará para o segundo turno o tal inominável junto com um notório apóstolo das trevas. Asseverino-lhes que o segundo vencerá e o governista terá menos votos no segundo turno do que teve no primeiro. Incrível!

Lá pelo fim do mês do cachorro louco, um deputado federal dirigirá ao tal das trevas o seguinte aviso: “Sou um deputado isolado, mas afirmo que V. Exa. está em contradição com o Brasil. A sua presença na Presidência da Câmara é um desastre para o Brasil e para a imagem do País”. Batata! O paladino do atraso cairá.

O deputado intimidador, carioca de origem mineira, ex-muso da tanguinha, continuará firme. Um benedito amigo do ameaçado – essa arenGa beira o absurdo – tentará impichá-lo, sem sucesso (para gáudio e alívio de todos).

Um deputado gaúcho, ex-governador, argüirá o conflito de interesses do novo presidente da Câmara ao conduzir o julgamento do impeachment de um amigão seu – o mais importante deputado petista. O sucessor do apóstolo das trevas fará jus a seu antecessor, esparramando ignorância com uma bravata patética – dirá que é honesto, falará da mãe viúva que criou 7 filhos...

Se mais não prevejo, Fidelito, é porque pensarão que estou delirando – ninguém me dará crédito. Mas garanto que, apesar de parecer fantasia, as previsões serão realidade. Que culpa tenho eu por 2005 ser um ano tão doido que extrapolará qualquer alucinação?

segunda-feira, 2 de março de 2009

Balela

Publicada n'O Taquaryense em 22 de outubro de 2005.

Fidel, sair de casa num domingo, por obrigação, para responder a uma pergunta inócua não é nada. Muita gente vai ter de passar o dia inteiro servindo como mesário enquanto os demais eleitores respondem por obrigação a uma pergunta inócua. É bem diferente da sensação de fazer algo pelo país, numa eleição relevante.

Inócua porque não vai no ponto. Sim ou não, não vai resolver o problema que supostamente aborda. “O comércio de armas e munição deve ser proibido?” é uma pergunta equívoca. O “sim” só fará criar outra megaindústria do crime: o tráfico de armas elevado ao cubo.

Mas quem disse que a violência não está diminuindo? Pelo menos, desistiram de assassinar o português, pois mudaram aquela redação original, com dupla negação: "Você é contra a proibição da comercialização de armas e munição em todo o território nacional?"

Eu quase não vi a propaganda na TV. Mas, quando vi, me assustei. É tão ou mais burra do que a campanha do último plebiscito, aquele sobre monarquia ou república, presidencialismo ou parlamentarismo. Mistificação e musiquinha. É mais uma prova de que não conseguimos pensar direito, de que nosso sistema educacional é uma das maiores tragédias da humanidade.

Tem mais. É e-mail fantasioso circulando pela internet, com histórias inventadas de massacres de cidadãos desarmados. É artista dizendo que eu devo dar ao governo o direito exclusivo de ter armas legais. O governo quer o monopólio da estupidez. A campanha de ambos os lados é marketeira, enganosa e confusa.

Por algum motivo, nenhum dos dois lados aborda uma questão crucial: para quem não confia neste governo (ou outro qualquer), a posse de arma é a única possibilidade de defesa num caso de ataque à liberdade. “Ah! Mas isso é paranóia”. É, sim. Ninguém vai tentar tomar o Estado, assim como ninguém tentaria violar o painel de votação do senado, nenhum juiz de futebol maluco roubaria por uma propina igual a quatro rodadas de trabalho honesto etc. etc.

Proibir o comércio de armas é tirar do cidadão o direito legal de se defender. Não se trata de incentivar a posse de arma, não se trata de achar bonito os acidentes com crianças e os crimes passionais. Trata-se de, mais uma vez, usar a caneta governamental para assaltar o cidadão e manter o bundão gordo sentado na poltrona, em vez de trabalhar.

Eu até que gostaria, Fidelito, de responder a alguma pergunta relevante em plebiscito. Por exemplo: “O número de senadores por estado deve voltar a ser 2?” Ou “O pagamento de deputados e senadores deve ser condicionado à sua freqüência parlamentar?” Ou “O patrimônio dos condenados por assalto ao erário deve ser confiscado?” Ou “Candidatos a cargo público devem ser forçados a publicar na internet sua ficha policial, escolar e psicológica?”

Melhor ainda seria a gente fazer as perguntas, né Fidelito? Não, melhor não... Daria mais “Tem uma boquinha aí pra mim, deputado?” do que pergunta que preste. Deixa assim. Vai lá, vota e depois reza, pede proteção contra a direita, a esquerda e os desorientados. Só não vai contar com a ajuda dos artistas que fizeram campanha para proibir o comércio de armas. Nem tenta chegar perto. Eles têm seguranças armados.