sábado, 28 de novembro de 2009

Interregno

Caros leitores,

O relógio parou nessas 60 e poucas crônicas. Fidel continua lindo, amável, sábio, já um tanto velhusco e encanecido. Mais merecedor do que nunca das cartas que lhe dedicava seu dono e discípulo espiritual e intelectual, porém as circunstâncias vêm escrevendo outra história...

Quem sabe um dia desses eu volto. Enquanto isso, fiquem com esta brincadeira que fiz no Wordle, mostrando a nuvem de termos usados nestas mal digitadas, da primeira à última crônica. Para mim, foi interessante conferir não apenas os temas abordados, mas algumas curiosas formações aleatórias (pela proximidade e sequência com que alguns termos apareceram na figura - clicando sobre ela dá para enlarguecer e ler melhor). Até um dia.

Mário Eriberto Frossard

sábado, 18 de abril de 2009

Prevendo 2006

Última crônica de uma era, que seria publicada em março de 2007, mas não o foi devido ao fechamento d’O Taquaryense. Com a mobilização da comunidade, o jornal reiniciou as atividades em meados de 2007.

Fidel, é virada de ano e novamente amolecemos nossos corações, dispostos a nos enganar e cair em qualquer conto-do-vigário. Fazemos qualquer coisa para continuar acreditando em Papai Noel.

Pai Mário junta envelopes de engov amassados que, à guisa de búzios, joga para prever o que será o ano de 2006. Sim, continuo contra a corrente, fazendo o difícil, que é prever o passado, enquanto outros bidus sem imaginação fazem previsões para o ano vindouro.

Mas, peraí... Há alguma interferência na minha antena sobrenatural. Vamos combinar assim, Fidelito: pelo menos uma das previsões a seguir é furada. Não sei dizer qual – todas são inacreditáveis e plenamente possíveis de acontecer no Brasil.

Em 2006 a cidade de São Paulo resolverá, de forma abrupta e completa, seus problemas de engarrafamento, roubos e falta de policiamento. O feito será creditado a um grande líder político. O nome dele... Marola, Carola... Fidel, dá uma pancadinha aí na antena futurista porque eu não estou conseguindo ver direito. Ah, valeu: Marcola1.

Um brasileiro irá para o espaço. Curiosamente, será um astronauta – e tanta gente querendo mandar certos políticos e tantas figuras tenebrosas para a estratosfera...

A Copa 2006 será plena de sucesso para o Brasil. Não seremos campeões, até porque ninguém estará a fim, mas os objetivos traçados serão todos atingidos – Ronaldo Gorducho será o maior artilheiro de todas as copas; Cafu será o recordista brasileiro de atuações em copas.

O governo e o partido do presidente continuarão aprontando em 2006. Apesar de tudo, o presidente vai se reeleger porque a oposição conseguirá ser pior. O candidato oposicionista será um sujeito que virá com uma conversa para lá de mole, que eu achava que estava sepultada desde Jânio Quadros, Fidelito. Me enganei. E assim seguiremos firme, rumo às trevas.

O espaço aéreo brasileiro será palco de um dos maiores shows de incompetência da história da humanidade. Fidel, dá uma cacetada bem forte na antena. Não pode ser... Eu estou vendo aqui que nenhuma autoridade (ir)responsável será demitida. Não pode ser verdade. Perdão, leitor. Perdão, leitora. Esquece essa previsão, meu aparelho de ver o futuro deve estar enguiçado.

Câmara e Senado votarão uma lei que permitirá a deputados e senadores bater a carteira e passar a mão no popô de qualquer cidadão pagador de impostos. Tentarão aprovar também o direito de encilhar e andar de cavalinho nos cidadãos, mas preferirão poupar os cofres públicos – as encilhas iriam custar muito caro.

A cidade do Rio de Janeiro, berço do flanelinha e de outras pequenas extorsões e estelionatos adotados pelo Brasil inteiro, verá concretizada a transferência do poder público para os traficantes, após décadas de cuidadoso planejamento. A culpa será da imprensa, que distorce tudo porque tem má vontade com o Híiu.

O Inter será campeão do mundo. Com um time reserva (ou coisa parecida). Com o Clemer de goleiro. Com o Abel de técnico. Com gols de uns guris de 17 e 19 anos na semifinal. Com gol do Adriano Gabiru na final. Contra o Barcelona, a seleção das seleções. Não me xinga, Fidel! Eu apenas estou te contando o que dizem os búzios. Já falei no início que alguma das previsões era furada; deve ser esta... Mas vou te contar: que festa! Ou esta é a previsão mais furada de Pai Mário, ou a seleção das seleções, o Barcelona, foi imobilizada, levou lençóis e outros dribles e caiu para não mais levantar diante do glorioso Colorado dos Pampas!



1 Marcola – Bandido, ou... como dizer de forma politicamente correta... Cidadão adepto da solução sumária de problemas e comerciante do ramo de tóchicos que em 2006 transformou-se no redentor da cidade de São Paulo. Fez o que nenhum político sequer chegou perto de conseguir: acabou com os engarrafamentos, roubos e falta de policiamento. Por alguns dias, a terra da garoa foi um lugar tranqüilo. Aterrorizado, mas tranqüilo.

sábado, 11 de abril de 2009

Internet cacete

Publicada n'O Taquaryense em 4 de novembro de 2006.

Fidelito, já encheu o saquinho esta enxurrada de e-mails atribuídos a escritores famosos que abarrota minha caixa postal. É sempre igual: sujeito chato, que se acha escritor, destila sua chatice num texto trôpego e o espalha pela web, atribuindo-o falsamente a algum figurão, na esperança de que passem adiante. Passam.

Já atribuíram a García Márquez um discurso piegas sobre um suposto câncer. Já atribuíram ao Luís Fernando Veríssimo umas gracinhas pouco engraçadas. Mas, como em toda a regra, há exceção: a Sara, aquela garota de Floripa, escreveu o "Quase", texto dor-de-cotovelo que alguém (ela jura que não foi) jogou na web com o nome do Veríssimo e criou fama.

“Quase” foi parar numa coletânea francesa (foi mesmo, não foi quase), matando duas cobras na mesma cacetada: provou o talento da menina e a universalidade da picaretagem. A francesa que se apropriou do texto "do Veríssimo" sequer o consultou – imagina se pagou os direitos autorais... A França não é um país sério.

Recebi um e-mail atribuído ao João Ubaldo Ribeiro. Podre. Como se o baiano fosse fazer esse discurso moralista que eu estou lendo - que no Brasil todo mundo é desonesto, bibibí, bobobó, com cinco pontos de exclamação (!!!!!) – prova inequívoca de que o autor não vive de redigir. Que no Brasil nunca vamos comprar jornal como no exterior, onde o sujeito bota a moeda, abre a caixa de jornal, tira um exemplar só e fecha a caixa de novo.

Tá bom. Tanta civilização ainda é sonho para nós. Mas, peraí... Achar que só a gente é picareta é um erro básico. A gente é vira-lata, isso sim - rouba-se e picareteia-se por qualquer trocado no Brasil. Qualquer mané rouba, não é preciso grande talento.

Porém, a picaretagem existe no mundo inteiro e é irreal esperar que suma. O que nós temos de particular é a democracia: tanto o juiz Lalau quanto o Zé das Couves roubam e se consideram cidadãos de bem. Eles não são “qualquer um”.

A última que me veio empestar a caixa postal é uma baboseira sobre uma tal “Sociedade dos Amigos de Plutão”. Segundo o e-mail, seria mais uma trambicagem do PT: uma ONG para promover o retorno de Plutão à condição de planeta (rebaixado que foi a asteróide, coitado).

A ONG receberia dinheiro público para pagar seus 800 diretores, a 20 mil reais por semana. Inclusive, o presidente Lula teria liberado 7,5 milhões de reais para a Sociedade. [Parênteses não bastam; aqui eu preciso abrir colchetes: faz a conta, Fidel, e vê que essa grana só pagaria 3 dias de salários da diretoria – para que tanto auê por essa mixaria?]

Só um sem-noção acreditaria numa besteira dessas, né Fidelito? Ou não. O jornalista Cláudio Humberto (porta-desaforo do ex-presidente Collor, lembra, Fidel?) denunciou a liberação da verba. O nobre senador Heráclito Fortes leu e, com a mesma falta de espírito crítico (na falta dela, o rigor jornalístico de verificar a verdade também teria resolvido o problema), defendeu a criação de uma CPI.

O bacana da vida moderna (tinha que ter alguma vantagem) é que está tudo aí para a gente conferir: o mico do senador foi parar no YouTube. A radiografia completa da besteira, incluindo link para a coluna claudiohumbertiana, está em www.quatrocantos.com/LENDAS/.

domingo, 5 de abril de 2009

Eu contra três

Publicada n'O Taquaryense em 23 de setembro de 2006.

Fidel, como tu bem sabes, temos a difícil, ingrata, lamentável tarefa de escolher, até outubro, nossos representantes na presidência da república, senado, câmara federal, governo do estado e assembléia legislativa estadual. A informação disponível para isso é nossa memória, musiquinha, a cara do sujeito ou da sujeita e alguma frase besta que o postulante declama, apanhando do teleprompter.

E a ficha corrida do boneco, para a gente saber de quantos anos de cadeia o estamos livrando? Pois, uma vez eleito, a impunidade parlamentar garante o indulto e o engavetamento do processo. Ê trem bão!

E o boletim escolar, para saber se estamos elegendo um burro esperto? E o psicotécnico, para saber se vamos sentar nas poltronas macias da casa executiva ou legislativa um maluco de atar? E a transcrição ipsis litteris de todas as declarações de renda já apresentadas à Receita Federal pela personagem? É isso que eu quero saber, postado na internet. Podem me poupar de musiquinha e papo engana-coió.

Para os que já deputam e querem deputar mais, eu quero a relação completa dos votos que deu até hoje e o índice de freqüência ao trabalho. Quer se reeleger? Pois eu quero saber como vossa excelência deputa. Sem dispensar a ficha corrida, o boletim, o psicotécnico...

Querem que eu pague essa campanha fraudulenta com um tal “financiamento público de campanha”. É ruim, hem? Se fossem pessoas físicas, Fidelito, o tribunal eleitoral, os partidos políticos e as produtoras de vídeo seriam presos por estelionato e formação de quadrilha. Ou o que tu farias com quem constrange o cidadão a financiar propaganda enganosa? A propaganda eleitoral gratuita é o conto do vigário em escala industrial e nacional.

Falam no financiamento público de campanha como se já não existisse. E quem é que paga o tempo da TV? E os partidos não recebem gordas boladas? Que fique claro, então: o financiamento público de campanha já existe; eles apenas estão querendo mais, muito mais.

Eu nunca ouvi falar de alguém que decidiu votar em um candidato porque viu um cartaz ou um anúncio no rádio ou TV. Muito menos porque participou de alguma das modalidades mais estúpidas de propaganda política - showmício e carreata. No entanto, é nessas coisas que muitos candidatos enterram boladas de dinheiro.

Eles devem ter razão. Eles sabem como votam os 75% de analfabetos do Brasil. Eu é que não sei. Mas não me digam que o Congresso é um espelho do Brasil, porque não é. Lá, muito poucos são analfabetos. Aqui fora, no Brasil, os bandidos não têm mesada e sigilo garantido.

Não me julga mal, Fidel. Não tenho nada contra os políticos, muito pelo contrário. Outro dia, ouvi falar de um deputado candidato a voltar à câmara federal que sabe o que é ciência e para que serve. Saquei rápido caneta e folha de papel. Resolvi 1/5 do problema; só falta escolher o resto dos meus candidatos.
Mas, eis que surge no horizonte uma luz. Há gente interessada em mostrar detalhadamente quem é cada candidato. São essas ongues. Talvez eu dê algum dinheiro para elas. O quê? Pensaste que o financiamento público de campanha iria para quem quer informar o eleitor? Tolinho! Isso não interessa ao tribunal eleitoral, aos partidos políticos e às produtoras de vídeo.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Tapir Hirsuto e os concursos públicos

Publicada n'O Taquaryense em 5 de agosto de 2006.

Caro Fidel, desde que te apresentei o emérito professor doutor Tapir Hirsuto, o homem não parou mais de se exibir. A grande influência do ilustre acadêmico se fez notar, recentemente, nos concursos públicos realizados por certas universidades federais (espero que não inclua a minha alma mater, Fidelito, a gloriosa UFRGS).

Pois Tapir e seus amigos deram para impor a mediocridade compulsória e fazer barreira para a competência. A idéia é simples: cada concurso exige diplomas específicos que o cidadão tem que ter. Não importa se o candidato é o maior expoente mundial da área do conhecimento. Não importa se os alunos estudam nos livros dele. Não importa se tem mais publicações científicas no assunto do que toda a banca que o julga.

É preciso ser um Tapir Hirsuto para impedir um Piaget de lecionar para Pedagogia. “Sabe o que é, seu Piaget, é que para entrar para o Departamento de Pedagogia da Universidade Federal de Cacimbinha tem que ter diploma de Pedagogia. Como o senhor é biólogo, não dá”.

O mesmo vale para outras panteras que não poderiam nem miar nas nossas universidades. O sociólogo Tom Davenport não poderia lecionar para Administração. É preciso ser um Tapir Hirsuto para barrar o talento e fazer da mediocridade o máximo admissível. Só no Brasil.

Pois é, Fidelito. Enquanto nós damos tanta importância a um pedaço de papel chamado diploma – uma espécie de prisão perpétua na cela coletiva dos obtusos que fizeram o mesmo curso –, os gringos do chamado “primeiro mundo” nem ligam para este tipo de cartório acadêmico. Chegam até a perdoar pequenos e grandes trambiques para que uma “fera” possa trabalhar.

Olha dois exemplos, um de pequeno deslize e outro de grandes crimes: o ator norte-americano James Woods começou a carreira sem ter estudado interpretação, mentindo e convencendo que era inglês de Liverpool para ganhar seu primeiro papel. É ou não é um grande ator? Fez Ciência Política no Massachusetts Institute of Technology e tem um QI acima de 180.

O outro exemplo é Frank Abagnale Junior, interpretado no cinema por Leonardo Di Caprio. Com 136 de QI, roubou milhões de dólares aos 19 anos com suas falsificações, além de enganar brilhantemente como professor, piloto de avião, advogado e médico. Foi preso, foi contratado pelo FBI e, tempos depois, enriqueceu como consultor em segurança contra fraudes.

Pensando bem, já que falamos em QI, bem que o emérito professor doutor Tapir Hirsuto poderia cair em desgraça e dar espaço para Koko, a gorila, que fala a língua de sinais e tem QI de 90, pouco menos do que um ser humano de inteligência mediana. Seu vocabulário é de umas 500 palavras (eu ia dizer algo sobre nossos universitários; melhor não...).

Koko dá respostas simples e sensatas. Perguntada se gostaria de ter um gato, um cachorro ou outro gorila como amigo, foi taxativa: “Cachorro” (eis que não são só os humanos os desiludidos com os de sua espécie). Se perguntássemos “O que tu achas dos concursos públicos nas universidades brasileiras?”, ela certamente responderia: “Burrice”.

Ela é uma ativista política e formadora de opinião. É palestrante de sucesso e já fez vídeos educativos, como podemos ver em seu sítio na web (www.gorilla.org). Abaixo Tapir Hirsuto! Koko para ministro da Educação!

terça-feira, 31 de março de 2009

Lá vamos nós, outra vez

Publicada n'O Taquaryense em 29 de julho de 2006.

Caro Fidel, a campanha ainda não começou quando escrevo estas mal traçadas, mas não tenho medo de errar ao dizer como vai ser mais uma emocionante corrida eleitoral. Por favor, Fidelito, chega de xingar os deputados e botar a culpa neles por tudo de ruim que há neste país. Eles são uma parte da ruindade, mas não têm competência para fazer a encrenca sozinhos.

Nosso presidente, quando não o era, disse que na Câmara Federal há “300 picaretas com anel de doutor”. Muita gente se assombrou com o cálculo conservador. E eu digo que o problema não é ter ou não ter o anel de doutor.

É que um criminoso tem todo o interesse e toda a vantagem em candidatar-se. Um cidadão honesto, não. Se há cidadãos honrados na Câmara, e os há, são desse tipo de gente tenaz que se dispõe a nadar contra a corrente.

Senão, vejamos. O salário é baixo. Detesto admitir que o Severino Cavalcanti tinha razão nesse ponto. Porém, se o deputado for trambiqueiro, pode aumentar o rancho roubando boa parte do salário de seus trocentos aspones oficiais, que ele tem o direito de contratar.

Para um candidato a deputado, ter um currículo brilhante não chega a ser crime... Só que crimes na ficha corrida são um incentivo muito melhor para quem quer um mandato e a conseqüente im(p)unidade parlamentar. Simples.

E o bom de tudo isso é que a campanha nivela o currículo brilhante à ficha corrida horripilante. Daqui até outubro, temos que escolher um da penca de candidatos a granel com base em foto e musiquinha. Não dá para saber o currículo, a ficha corrida e o psicotécnico, portanto temos grande chance de eleger um burro (todavia esperto), bandido ou maluco. Ou pior, ainda: “Todas as alternativas anteriores”.

É... não há como saber. Sabe como é... Estamos em 2006; ainda não inventaram a internet. Além disso, se existisse a internet, seria muito caro publicar. Caríssimo. Mais caro que fazer boné. Ah, se houvesse um jeito de saber...

Observa, Fidelito, que os políticos fogem, como vampiro de crucifixo, de qualquer possibilidade de esclarecer quem realmente são. Isso não lhes interessa. Tanto que, se têm bastante dinheiro para a campanha, investem em coisas estúpidas-descerebradas como showmício. Tudo para evitar que o povo pense, tudo para que continue sendo um gadinho fácil de enganar.

Para não cometer injustiça, Fidelito, passeei por alguns sítios de partidos na web. Tem fotos, jingles, informativos partidários, peças publicitárias, brindes do partido para levantar fundos, mas... nada de dizer todos os lugares em que cada mandatário e cada candidato estudou e trabalhou (com telefone e e-mail, claro), se foi processado ou preso e por qual motivo...

Alguns partidos chegam a dar os e-mails e telefones de deputados. Há até os que apontam para a página do deputado no sítio na Câmara dos Deputados. Lá existe uma “Biografia” com alguma informação. Claro que eles escolhem os melhores ângulos para se apresentar. Vou te contar, Fidel: todos são “Gisele Bínchem”.

Mas não é bem isso que eu quero, Fidelito. Como se fosse buscar um auxiliar numa agência de emprego, eu quero um “menu”. Quero ver se os candidatos são empresários, administradores, se foram pobres, se são ricos, de onde veio a fortuna... Daí vou poder dizer que há escolha.

sábado, 28 de março de 2009

Tem que ser macho

Publicada n'O Taquaryense em 1 de julho de 2006.

Fidel, quero falar mais sobre o Sobril, o país fictício de nome inspirado no sobro, uma corticeira que havia em sua costa. Mais ou menos o oposto do Brasil, já que o pau-brasil é incorruptível e duro, segundo o Aurélio.

Pois no Sobril há uma gente nostálgica que se apoquenta com a decadência dos costumes. Eles dizem coisas como “é o fim”, “não tem mais home no Sobril”, “no meu tempo, fio de bigode valia como contrato; hoje, nem papel reconhecido em cartório põe limite nos velhacos”.

Cá para nós, Fidelito, eu acho meio esquisito esse papo de “ser home”, pois honestidade e caráter não têm gênero. Mas, que seja. Vou contar uma história de macheza que recentemente impressionou os cidadãos do Sobril.

O presidente, de origem octária, era querido pelo octariado (que é como eles chamam o povo). Mas a casa começou a cair quando um chupim governamental de n-ésimo escalão apareceu na TV embolsando dinheiro e dizendo que era fácil roubar. O chupim virou caranguejo – um ladrão foi fazendo aparecer outro, e outro, e outro... Não que tenham puxado todos os ladrões, digo, caranguejos do balde, mas foi um montão.

Lá pelas tantas, Fidelito, já não tinha balde para caber tanto caranguejo: era amigo, era parente, era nego carregando dinheiro na cueca, até adversário político – a coisa ficou perigosa, os mais afoitos já gritavam que todo mundo era caranguejo. Mas não era nada disso, porque todos esses caranguejos aí traíram ele – o presidente, que não sabia de nada (este parágrafo se presta a leituras dramáticas com várias entonações, especialmente neste final).

Mas, calma, que eu chego na história de macheza. O negócio continuou, caranguejo enganchado em caranguejo, até que apareceu um crustáceo grande, que não se esperava: o zagueiro-central do time do presidente. O sujeito da retaguarda, uma espécie de Figueroa, para quem é mais antigo (não existem exemplos atuais; se eu falar nos irmãos Pontes do Gaúcho de Passo Fundo, é a mesma antiguidade).

Pois o becão do governo sobrileiro fora visto e revisto numa casa de tolerância da capital do país – casa essa que era um laboratório de pesquisa em sacanagem. Sabes como é, Fidel? Lá eles desenvolviam e experimentavam novos tipos de sacanagem da braba. Tecnologia de ponta, mas era coisa que dava cadeia.

Vai daí que o caseiro da casa de tolerância viu nosso herói muitas vezes lá, e foi chamado a dar testemunho frente aos nobres representantes do povo sobrileiro. Era para dizer se viu mesmo o zagueirão lá, quantas vezes, com quem, que tipo de sacanagem fazia...

Mas eis que se levanta um membro (ops!) do Judiciário sobrileiro para salvar nosso herói. Com a mais esfarrapada das desculpas, o desembargador exarou (Fidelito, é estranho como soa este verbo; posso ver os magistrados gracejando: ‘- Que crime hediondo! Vossa excelência exarou? - Eu não! Quem exarou foi vossa excelência, que falou’) que o caseiro não iria falar porque era ignorante, e caso encerrado.

Cabra macho! Ou eu não entendi, Fidel, ou ele chamou o presidente de burro, pois o caseiro era até mais instruído que o presidente. E ainda por cima caçoou dos seus colegas ingênuos que se preocupam em zelar pela própria reputação. Dar uma sentença estapafúrdia e ainda sugerir que o presidente devia calar a boca? Ala fresca! Mas que baita macho!

quarta-feira, 25 de março de 2009

Me dá meu boné

Publicada n'O Taquaryense em 24 de junho de 2006.

Fidel, de vez em quando algum objeto fica famoso no Brasil e só se fala nele. Já foram: foguete, (boquinha da) garrafa, cueca... Agora é a vez do boné, que já era imortal na voz da Clementina de Jesus: “Me dá meu boné que eu já vou-me embora, porque brincadeira tem hora”.

Pois o Congresso Nacional, fustigado por tanta corrupção, buscando eleger alguém (“El malo”) que pudesse assumir e purgar os pecados atuais (os roubos de PIB dos últimos 500 anos a gente já dá por perdidos), elegeu o boné. Faz sentido, pois uma pessoa, por mais ladrão de carteirinha que fosse, jamais conseguiria chupar para si toda a culpa, fazendo os demais parecerem honestos. Demonizaram o boné, então.

Decidiram que o caixa 2 das campanhas políticas existe porque precisa ter dinheiro para fazer boné de candidato. Sem boné, caixa 2 never again. Mas sempre tem um descontente, né Fidel? O pessoal que faz boné detestou a idéia.

Outro dia ouvi uma entrevista no rádio que me deu dó. Evito nomes reais para não ficar chato. O entrevistador era um jornalista que me apraz ouvir, chamado, digamos, Hétero Cabeleireiro. O entrevistado era um senhor que faz boné, chamado, digamos, seu Zé do Boné.

Deu pena porque seu Zé tentava argumentar contra o recente veto à distribuição de bonés e outros brindes pelos candidatos. Só que se enrolou ao dizer que dar brinde não é comprar voto, mas que o boné é uma peça de mídia. Só que anúncio em outdoor, TV e rádio também são. Como o espírito da lei é evitar o abuso do poder econômico, Zé do Boné deu um tiro no pé.

Havia outras estratégias. Ele podia apontar a arrogância dos puderes constituídos no Brasil, que não se envergonham de mudar uma regra da noite para o dia em vez de valer para a próxima eleição (outra suprema arrogância é cobrar imposto de renda no último dia do mês e dane-se quem mais paga, o assalariado, que recebe no início; mas essa é outra história).

Ou, então, seu Zé poderia botar o boné de cidadão brasileiro e aproveitar para propor uma troca. Para compensar que os empresários e trabalhadores da indústria do boné vão passar fome, os senhores candidatos seriam obrigados a publicar sua ficha corrida, psicotécnico e referências de cada lugar que passou, desde o jardim de infância. O currículo completo.

Tudo na internet; quem omitir algo fica inelegível ou perde o mandato. Tem que ter o nome, endereço e telefone da professora primária, dos colegas de escola, dos chefes, colegas e subordinados. Assim, nós poderíamos escolher um candidato, o que é impossível no atual sistema blablablá-e-musiquinha.

Já pensaste, Fidel? “Alô, dona Solange? Por que é que as notas do candidato Asdrúbal eram tão baixas?” “Ooo queee? O deputado Mamute era lotado aí mas só tomava cafezinho e trazia atestado? Não admira que falte às sessões da Câmara!” “Quer dizer que o candidato Paramécio foi pra rua porque roubou no caixa? Aham...” “É mesmo, seu Souza? O candidato Helminto levou para casa a máquina autenticadora e distribuiu 500 carnês de IPTU ‘pagos’? Radical! Por isso faz tanto voto!” “Washington, o doutor é advogado de quantos traficantes, mesmo?”

Se for assim, Fidelito, eu até topo financiamento público de campanha. Pago com convicção. Senão, me dá meu boné que eu já vou-me embora, porque brincadeira tem hora.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Não me resgatem a cidadania

Publicada n'O Taquaryense em 27 de maio de 2006.

Caro Fidel, não deixa jamais que me resgatem a cidadania. Olha dona Guilhermina: pessoa fina, amabilíssima – até o dia em que tentaram resgatar a dela. De família culta, professora de português, membro da academia estadual de letras, poeta, empresária, negra, socialite, elegante. Andava de bengala (recuperava-se de um acidente com seu Volvo automático).

Num desses dias, sem poder dirigir, saiu de táxi. Na volta, quis andar um pouco, para espairecer. Por azar, enfiou o salto do sapato numa fresta dessas feitas pelo Departamento Municipal de Avacalhação Urbana (DMAU). Quebrou o salto do pé esquerdo, o da perna machucada.

Força na bengala! Só que, mal sustentado pela bengala, empurrado pela perna direita, o corpo se inclinava perigosamente ainda mais para a esquerda, onde não havia ponto de apoio, mas só e apenas uma grande cratera junto ao meio-fio (aberta, provavelmente, pelo mesmo DMAU).

Havia água da chuva no big buraco, mas era só o excipiente, digamos assim. A essência daquele xarope era o esgoto doméstico que, por economia de algum talentoso construtor, compartilhava dutos com o esgoto pluvial. Fedia.

Guilhermina requebrou num movimento gracioso e deu um arrojado salto com bengala em semi-parábola, em trajetória balística digna de questão de vestibular. Seu corpo estatelou-se no fundo da cratera, em decúbito dorsal, atolado numa nojeira marrom.

Um pedestre se apressou a acudir e soerguer Dona Guilhermina, com a ajuda de um taxista. Molhada, a blusa de seda esvoaçante colou no corpo e deu à vítima um jeitão de meretriz decadente, agravado pela maquiagem que escorria. Logo juntou gente – mais para peruar do que para ajudar, como é comum.

Guilhermina tossia e resfolegava quando surgiu Ana Cândida Wölfenbüttelmeister, ativista feminista onguista – dessas ongues, sabes Fidel? “Aninha” para os correligionários, “Bruxa” ou “Peste” para os (muitos) desafetos.

Aninha não viu nada, mas concluiu e passou a grasnar que os cavalheiros que amparavam Dona Guilhermina a estavam abusando “enquanto mulher”, que ia “estar chamando” a polícia, que aquilo era “um problema a nível de violência contra minorias, por ser mulher, negra, idosa, deficiente e prostituta”. Dona Guilhermina, a princípio perplexa, foi envermelhando de raiva.

Piorou quando chegaram policiais e, aos latidos de Aninha, desceram o cacete nos pobres ajudantes. A acidentada tentou defendê-los, mas só conseguiu tossir. Aninha seguiu cacarejando no gerúndio e arrastou a contundida pelo braço, dizendo: “Vou fazer uma colocação: vou estar resgatando sua cidadania”.

Nesse movimento, Aninha bafejou seu hálito de múmia e, suprema imprudência, expôs o pescoço. Possuída de ódio, a benigna empresária atacou a goela da onguista, esganando-a até arroxear e gritando: “Não me resgata a cidadania! Não me resgata a cidadania!”.

Aninha chegou a desfalecer. Custou 10 minutos de luta corporal para que os policiais conseguissem deter Dona Guilhermina e prendê-la por agressão, desacato e resistência à prisão.

Ela e Aninha passam bem. Com a intervenção de advogado, padre e prefeito, Dona Guilhermina pôde deixar a cela insalubre, com mil desculpas do delegado. Foi escoltada em alto estilo até sua casa. Resgataram-lhe a cidadania.

Dois baixinhos atarracados

Publicada n'O Taquaryense em 20 de maio de 2006.

Caro Fidel, algumas figuras que fazem boa fama conseguem mantê-la intacta para a posteridade. São os que morrem cedo. Não dá tempo de mostrar as mazelas do ser humano.

Carlos Gardel (canta cada vez melhor), Ayrton Senna (supercampeão e filantropo). Mas alguns não morrem cedo e expõem fraquezas: Pelé, que negou e renegou a filha que é o seu focinho; Emerson Fittipaldi, que foi salvo do acidente de ultraleve de graça, pelos bombeiros, e fez propaganda para um plano de saúde, com helicóptero, inventando um resgate inexistente.

Emerson esqueceu que foram os bombeiros, esqueceu que se arriscaram, que um perdeu um pé de bota e uma farda na operação de salvamento, que quinze viaturas participaram do resgate. São erros, maracutaias, trapaças, humanidades.

Os heróis às vezes abusam. A fama mingua, mas não some – sempre restam fãs que os elevam a ídolos. Todavia, os fatos criam uma imagem sinistra na cabeça de qualquer pessoa que admita uma análise racional da coisa.

Quero falar, por estas mal-traçadas, de dois baixinhos atarracados, amados pelo povo, que suicidaram a fama jogando-a do alto da vaidade. Um é argentino e encantou o mundo com seu talento futebolístico. Um grande artista; nem precisaria dizer que se chama Maradona.

Não bastasse a sacanagem do gol de mão contra a Inglaterra, na Copa de 1986, que ele atribuiu à “mão de Deus”, o baixinho teve um ataque de sinceridade que nivelou a estatura moral à estatura física. Era um programa de TV com vários marmanjos dizendo besteira (típico...).

Lá pelas tantas, Maradona contou que tinha tranqüilizante a água oferecida a Branco, lateral e competente cobrador de faltas, no jogo contra o Brasil na Copa de 1990. A mentoria do crime é atribuída ao técnico Carlos Bilardo. Mas, ao rir às gargalhadas com todos os participantes do programa, deu um recado inequívoco aos argentinos: “somos espertos”.

Como fica a cabeça do garoto argentino que vê o maior herói nacional vivo declarar que, para vencer, é preciso, justo, ou até bacana trapacear? Que espécie de perversão é preciso construir nas cabecinhas para vencer essa dissonância cognitiva? (Pois papá, mamá, abuelo y abuela sempre disseram que trapacear é feio).

Vamos ao outro. Esse é brasileiro, de origem muito humilde, como o argentino. Porém, diferente do argentino, levou 20 anos para que fosse aceito pela maioria. De tanto persistir.

Perdeu 3 eleições para presidente. Na primeira, insistiu na campanha limpa apesar das vulnerabilidades do oponente no campo das drogas e do catatau de mentiras – as mais importantes desmascaradas na TV, em horário nobre – plantadas pelo comitê do oponente.

Hoje eleito e em pleno mandato, quando começou a ficar claro que as práticas de seu governo são iguais ou piores do que as de antes, nosso presidente fez de conta de que não era com ele. E pisou na bola de verdade ao afirmar que ninguém tem mais autoridade moral e ética do que ele para combater a corrupção.

O aparelhamento partidário de empresas públicas, com companheiros sem a competência dos especialistas que substituíram, o negócio para lá de estranho do filho, o dinheiro em cuecas, jatinhos etc. no caminho do bolso de deputados... isso são fatos. Vociferar em favor próprio é bravata de baixinho invocado.

segunda-feira, 16 de março de 2009

O Rio Grande rumo às trevas

Publicada n'O Taquaryense em 25 de março de 2006.

Fidel, no ano passado eu falei sobre o campeonato de futebol do Sobril Meridional, um estado do fictício Sobril, país cuja bandeira ostenta o mote “Com jeito vai” escrito sobre uma banana. Por causa de um atentado à língua perpetrado no regulamento do campeonato, não deram o título ao legítimo campeão, o XXX de Fevereiro, mas ao Multinacional.

Tudo no Sobril é parecido com o Brasil, só que diferente. Eu achei que seria divertido inventar essa história para contar um causo real. E não é que eles fizeram de novo? Agora eu me obrigo a falar do Brasil, mesmo, e do Rio Grande do Sul e seu campeonato de futebol.

Na verdade, leitor não afeito ao esporte bretão, o assunto não é futebol, mas educação – a parte que se ensina na escola. No ano passado, não deram a taça ao legítimo campeão gaúcho, o XV de Novembro de Campo Bom, porque o regulamento não fazia sentido e estava escrito num “português” (entre aspas para não ofender a língua pátria) tão esdrúxulo que o XV desistiu.

Bueno, fizeram de novo. Eu gostaria de estar errado, Fidelito. Quem sabe o regulamento legítimo foi violado por um terrorista da língua, que esparramou vírgulas como quem joga milho às galinhas. Porém, temo estar certo.

Não são só as vírgulas. A lógica e o encadeamento de idéias são tão tortos que custaria um grande poeta para inventar algo tão ruim, se quisesse. É ruindade natural. Está lá, no sítio da Federação Gaúcha de Futebol.

O Rio Grande do Sul foi o primeiro estado do Brasil a ter escola. Costumava ser referência nacional em educação – melhor do que o centro do país e muito melhor do que o Norte, Nordeste ou Centro-Oeste. Gerou poetas e romancistas importantes, mas finalmente encontrou, ao que parece, sua vocação: o analfabetismo funcional.

Volto ao Sobril, Fidel: contei da visita, no ano passado, a Cais Jovial, leal e valerosa capital do estado sulista. Falei do meu pasmo ao circular pelo bairro Cidade de Pedra e ver placas de “sentido obrigatório à esquerda” onde deveria ser “proibido virar à direita”.

Só que eu não sabia que a estupidez sinalizatória estava espalhada por toda a cidade. Perdi a capacidade de contar fábulas: era Porto Alegre, mesmo. Era Petrópolis. E me apavorei mais um pouco quando andei por algumas cidades do interior e constatei que a moda lá chegou. São placas de trânsito que comandam os gaúchos ao suicídio, pois, em avenidas largas, elas dizem: “na próxima esquina, tu és obrigado a virar à esquerda, mesmo que tenhas que te atravessar na frente de um ônibus lotado, um caminhão e um fusca, porque eu tô mandando”.

É engraçado, Fidelito. Eu conheço gaúchos cultos. Alguns até lêem livros. Há, entre os políticos, vários intelectuais. Há, entre os professores e até estudantes, vários que conseguem formar uma frase com sujeito, verbo e complemento, com concordâncias acertadas e regências apropriadas. Porém, hoje estou desanimado, com a impressão de que todo mundo foi aluno do professor Tapir Hirsuto.

Daí, dá uma gastura, uma dor no estrombo, uma vontade de comer melancia com uva até perdê a indentidade e batê as bota. E pra não dizê imporpérios, palavras de baixo escalão, pra não estrupar mais a língua portugueza, vou escolher umas palavras menas grávidas para mim berrar até se esgüelar: NÓIS TEM POBREMA!

sexta-feira, 13 de março de 2009

Balela, mais balela

Publicada n'O Taquaryense em 28 de janeiro de 2006.

Caro Fidel, já vai longe o referendo da proibição do comércio de armas e munições, mas ainda sobrou assunto. Falou-se muito de violência e, realmente, a razão saiu estropiada pela mistificação e pela musiquinha.

Muitos chamaram de “Referendo do Desarmamento”, embora não se estivesse votando pelo desarmamento. Mas era referendo justamente porque a proibição já estava no Estatuto do Desarmamento, com a ressalva de que o povo deveria referendar (não referendou).

Só que o próprio Estatuto já garante a várias categorias o direito a não apenas possuir, mas também portar armas (como, se não pode comprar?). Uma loucura. Um festival de bobagens quase tão absurdo quanto o regulamento do último campeonato gaúcho de futebol (mas sem tantos erros de português, reconheçamos).

Lá se foram 270 milhões de reais num referendo fadado a dar em nada, mesmo que vencesse o “Sim”. Em eleições comuns, pelo menos, a frustração por ver eleitos vários criminosos e malas-sem-alça é balanceada pela diversão. Um candidato xinga o outro e o povo se diverte. Aparecem os candidatos mais esquisitos e o povo se diverte.

Nesse referendo, não. Foi só chateação. E, além dos revólveres e espingardas, continuamos a conviver com o porte de todo tipo de arma pelos tipos mais inescrupulosos. Se, por um lado, uma espingarda pode servir não à violência mas à defesa, por outro lado há coisas feitas para a paz, mas que se transformam em arma pelo abuso do portador.

Olha o exemplo do pintor de placas de trânsito da cidade de Porto Alegre, Fidel: o pincel desse sujeito já matou a lógica, ao confundir “proibido dobrar à direita” com “sentido obrigatório à esquerda”. Se os motoristas porto-alegrenses obedecerem a sinalização, aí sim haverá mortes a rodo, pois em muitos casos a placa manda atravessar a pista contrária, cortando a frente de quem vem no outro sentido. Então são duas violências: contra a lógica e contra a integridade física.

Para não falar só de armas letais, citemos algumas de dano moral. A língua do nosso presidente da república, por exemplo, que confunde tatame com tapume, jura solidariedade ao Roberto Jefferson, louva o “nosso Delúbio” e diz que caixa 2 não é tão feio, sem falar no tradicional assassínio da língua portuguesa.

As declarações do presidente dificilmente matam, mas causam alguma confusão e nos dão vergonha. Ele, e quem sabe mais uma série de outras figuras, poderiam ter a língua interditada a bem do interesse comum, para evitar o incômodo, a moléstia causada aos cidadãos. Não é isso que chamam de dano moral?

Outra arma que poderia muito bem ser proibida é qualquer fonte sonora na mão de cretinos mal-educados e arrogantes. Certo, concordo contigo, não é simples determinar quem é cretino mal-educado e arrogante, pois quem é acha que não é. Mas arrisco que, quanto ao meu vizinho, todos concordariam que a cretinice é berrante e bem documentada pela Polícia Militar. Enfim, Fidelito, poderíamos ir longe com a lista. O leitor certamente gostaria de proibir algumas armas. Duro é que uns pilantras só entendem porrada. Violência não é a resposta, mas às vezes pode ser um bom palpite.

Não vem com essa

Publicada n'O Taquaryense em 21 de janeiro de 2006.

Caro Fidel, se tu não sabias, andar de bicicleta, falar outra língua, ser pai, mãe, chefe, professor, imitar pum com o sovaco, adolescer, tocar maraca e tudo o que requer aprendizagem precisa do erro. Fazer tudo perfeito não é humano. E eu já estou perdendo a paciência, não agüento mais tanta gente – velha, inclusive – dizendo que 2005 foi um ano que deu vergonha de ser brasileiro.

Não vem com essa. Em 2005 descobriu-se (para quem não sabia - alô-ouuu...) que as campanhas políticas são pagas pelo caixa 2. Que aspones laranjas sacam dinheiro para seus chefes movimentarem o comércio de deputados - se preciso for, carregando pila até na cueca.

Que autoridades ordenham detentores de concessões públicas, criando dificuldades para vender facilidades. Veja-se o caso do paladino do atraso, o presidente impichado da Câmara Federal, a chupar um mensalinho do dono do restaurante da Câmara, aquele da linda esposa, senão cancelava a concessão.

Que, mesmo que tenha aperfeiçoado muito o sistema, o atual governo não o inventou - é tudo parecido com o que fizeram governos anteriores, embora alguns vetustos senhores caras-de-pau vociferem pela moral e bons costumes. Que quem rouba muito não vai para a cadeia, mas quem aponta um ladrão pode ir – vide os cineastas-arapongas que filmaram o chupim Maurício dos Correios, ladrãozinho que só numa embolsada vista na TV chupou o que alguns trabalhadores jamais conseguem juntar.

Que 25 mil cargos de confiança para lotear entre os correligionários é fermento para a corrupção, mas não se acaba com isso porque é do interesse de todos os políticos equívocos – e os há em número suficiente para deixar tudo na mesma. Que é balela que não há dinheiro para aumentar o salário mínimo – há, mas os bilhões e bilhões da corrupção são intocáveis. Que é lorota que os governadores querem diminuir a sonegação – isso diminuiria o lucro dos amigos que os financiam; seria trair os amigos.

Que, afinal, valeu a pena toda aquela briga dos deputados para aumentar o número mínimo de vereadores por cidade de 7 para 9. Porque, nesse esquema-pirâmide da perversão, criaram-se 10 ou 11 mil cargos de vereador a mais. Nessa AmUei da perversão – sabe a AmUei? – os novos vereadores aumentam a rede de troca de favores dos seus padrinhos políticos.

Em 2005, vimos o resultado daquela briga vencida pelos apóstolos das trevas, que aumentaram o número de vereadores. Que nem no marketing multi-nível – nome bacana, né Fidelito? –, o bagrinho faz parte da rede do bagrinho um pouco maior, este de outro um pouco maior, até chegar ao tubarão. Cada bagrinho na rede aumenta a influência do padrinho ou upline, como se diz em linguagem marketeira.

E já viste, Fidelito? Quem está no topo da pirâmide gosta de ser passivo, provocando ou cedendo sofregamente aos avanços dos corruptos ativos. Foi o caso do restaurante da Câmara: Severino, passivo, Buani, ativo. Acho que tem a ver com o talento do segundo para conquistar aquela morena maravilhosa que o acompanhava.

Se tu não achas tudo isso motivo de orgulho de ser brasileiro, Fidelito, o que eu vou fazer? Azar de quem prefere a ignorância, pois nunca soubemos tanto quanto agora. Vergonha é roubar e não poder carregar na cueca.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Previsões para 2005

Publicada n'O Taquaryense em 14 de janeiro de 2006.

Caro Fidel, nesta época do ano Pai Mário abre o cafofo para fazer previsões infalíveis sobre o ano passado. À guisa de búzios, rolhas de espumante (Pai Mário prestigia a produção nacional; bebe espumante e não champagne).

Grassam na imprensa grande e mais afeita a iludir do que a informar as reportagens com previsões baratas. Aqui não. O negócio é sério. Podem me cobrar as previsões depois. Qualquer semelhança dos personagens das previsões com pessoas ou organizações terá sido mera coincidência (na verdade, isso é só uma frase de efeito para tentar evitar processos).

2005 evoluirá sob o signo de um pássaro e da filosofia rodriguiana – Nelson Rodrigues disse que o subdesenvolvimento não se improvisa. Assim será. Todo o esforço será feito por governo e oposição para que o país ande para trás. Contudo, como eles não fazem nada direito, algumas coisas andarão para frente.

O pássaro do ano será o chupim. Na primeira metade do ano, um chupim funcionário público será filmado embolsando propina e contando vantagem. Porém, como 2005 é o ano do chupim e o chefe dele não vê TV, pasme, ele não perderá o emprego. Quem irá preso será o cameraman.

Só que um deputado que vê TV, cuja graça homenageia um pai da pátria norte-americana, será implicado. Para não deixar só o seu (bico) na reta, piará. No gorjeio, jogará tudo no ventilador: careca, outros deputados à toa, tesoureiro, primeiro-ministro, presidente.

Tem mais, Fidelito: secretária, laranjas, roubo de empresas públicas, presentes caríssimos... Mais não conto porque não cabe nestas mal traçadas. Só esperando para ver.

O governo federal implantará a política “sorvete na testa”. Primeiro, fiando-se na tradição de que o partido de maior bancada elege o presidente da Câmara dos Deputados, tentará impingir um cujo nome ninguém consegue pronunciar. O plenário, em resposta à ofensa léxica, levará para o segundo turno o tal inominável junto com um notório apóstolo das trevas. Asseverino-lhes que o segundo vencerá e o governista terá menos votos no segundo turno do que teve no primeiro. Incrível!

Lá pelo fim do mês do cachorro louco, um deputado federal dirigirá ao tal das trevas o seguinte aviso: “Sou um deputado isolado, mas afirmo que V. Exa. está em contradição com o Brasil. A sua presença na Presidência da Câmara é um desastre para o Brasil e para a imagem do País”. Batata! O paladino do atraso cairá.

O deputado intimidador, carioca de origem mineira, ex-muso da tanguinha, continuará firme. Um benedito amigo do ameaçado – essa arenGa beira o absurdo – tentará impichá-lo, sem sucesso (para gáudio e alívio de todos).

Um deputado gaúcho, ex-governador, argüirá o conflito de interesses do novo presidente da Câmara ao conduzir o julgamento do impeachment de um amigão seu – o mais importante deputado petista. O sucessor do apóstolo das trevas fará jus a seu antecessor, esparramando ignorância com uma bravata patética – dirá que é honesto, falará da mãe viúva que criou 7 filhos...

Se mais não prevejo, Fidelito, é porque pensarão que estou delirando – ninguém me dará crédito. Mas garanto que, apesar de parecer fantasia, as previsões serão realidade. Que culpa tenho eu por 2005 ser um ano tão doido que extrapolará qualquer alucinação?

segunda-feira, 2 de março de 2009

Balela

Publicada n'O Taquaryense em 22 de outubro de 2005.

Fidel, sair de casa num domingo, por obrigação, para responder a uma pergunta inócua não é nada. Muita gente vai ter de passar o dia inteiro servindo como mesário enquanto os demais eleitores respondem por obrigação a uma pergunta inócua. É bem diferente da sensação de fazer algo pelo país, numa eleição relevante.

Inócua porque não vai no ponto. Sim ou não, não vai resolver o problema que supostamente aborda. “O comércio de armas e munição deve ser proibido?” é uma pergunta equívoca. O “sim” só fará criar outra megaindústria do crime: o tráfico de armas elevado ao cubo.

Mas quem disse que a violência não está diminuindo? Pelo menos, desistiram de assassinar o português, pois mudaram aquela redação original, com dupla negação: "Você é contra a proibição da comercialização de armas e munição em todo o território nacional?"

Eu quase não vi a propaganda na TV. Mas, quando vi, me assustei. É tão ou mais burra do que a campanha do último plebiscito, aquele sobre monarquia ou república, presidencialismo ou parlamentarismo. Mistificação e musiquinha. É mais uma prova de que não conseguimos pensar direito, de que nosso sistema educacional é uma das maiores tragédias da humanidade.

Tem mais. É e-mail fantasioso circulando pela internet, com histórias inventadas de massacres de cidadãos desarmados. É artista dizendo que eu devo dar ao governo o direito exclusivo de ter armas legais. O governo quer o monopólio da estupidez. A campanha de ambos os lados é marketeira, enganosa e confusa.

Por algum motivo, nenhum dos dois lados aborda uma questão crucial: para quem não confia neste governo (ou outro qualquer), a posse de arma é a única possibilidade de defesa num caso de ataque à liberdade. “Ah! Mas isso é paranóia”. É, sim. Ninguém vai tentar tomar o Estado, assim como ninguém tentaria violar o painel de votação do senado, nenhum juiz de futebol maluco roubaria por uma propina igual a quatro rodadas de trabalho honesto etc. etc.

Proibir o comércio de armas é tirar do cidadão o direito legal de se defender. Não se trata de incentivar a posse de arma, não se trata de achar bonito os acidentes com crianças e os crimes passionais. Trata-se de, mais uma vez, usar a caneta governamental para assaltar o cidadão e manter o bundão gordo sentado na poltrona, em vez de trabalhar.

Eu até que gostaria, Fidelito, de responder a alguma pergunta relevante em plebiscito. Por exemplo: “O número de senadores por estado deve voltar a ser 2?” Ou “O pagamento de deputados e senadores deve ser condicionado à sua freqüência parlamentar?” Ou “O patrimônio dos condenados por assalto ao erário deve ser confiscado?” Ou “Candidatos a cargo público devem ser forçados a publicar na internet sua ficha policial, escolar e psicológica?”

Melhor ainda seria a gente fazer as perguntas, né Fidelito? Não, melhor não... Daria mais “Tem uma boquinha aí pra mim, deputado?” do que pergunta que preste. Deixa assim. Vai lá, vota e depois reza, pede proteção contra a direita, a esquerda e os desorientados. Só não vai contar com a ajuda dos artistas que fizeram campanha para proibir o comércio de armas. Nem tenta chegar perto. Eles têm seguranças armados.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

E El Malo, que não vem?

Publicada n'O Taquaryense em 17 de setembro de 2005.

Fidel, ponho entre aspas porque foi ouvido por um amigo meu durante uma corrida de táxi: “Tem umas coisas sem sentido que não têm cabimento”. Todo mundo sabe que os motoristas de táxi entendem de economia, mas de vez em quando também criam pérolas da filosofia.

Uma das coisas sem sentido que não tem cabimento é esse costume brasileiro de punir o inocente e premiar o bandido. Há exemplos de sobra (eu mesmo fui premiado com 2 anos de corte salarial por detectar uma fraude e relatá-la à instância competente – o leitor me diga se não conhece quem viveu coisa parecida).

Agora mesmo, no lamaçal político brasileiro, pipocam exemplos. O caso que achei mais mimoso é o que envolve os protagonistas Chupim Maurício, alto funcionário dos Correios filmado ao embolsar 3 mil reais de propina, dizendo que “pode-se roubar de tudo nos Correios”, e quem planejou o videoclipe que acabou na TV.

Pois prenderam o ‘produtor cinematográfico’ pouco depois de a gatunagem explícita aparecer na TV. Já o Maurício... Vi a entrevista do chefe dele. Mais de 3 meses após o chupim barbado e bandeiroso roubar em horário nobre, ainda não encontrou motivos para demiti-lo.

A mensagem passada às criancinhas é claríssima: pode roubar, mas mostrar que um vigarista está roubando é considerado de péssimo tom e dá até cadeia. Mesmo que se filme e mostre o bandido com a mão na massa e ainda por cima contando vantagem. O vira-bosta continua solto e recebendo salário.

Bueno, a entrevista do tal chefe, sujeito mais lerdo para tirar conclusões do que um pé de samambaia, passou na TV. O chefe do chefe é o ministro das comunicações. Se o ministro não viu, algum assessor deve ter visto.

Pelo jeito, o ministro também não acha que há motivos para levar a mal o afano filmado de três mil réis praticado pelo larápio de óculos, gravata e barba mal feita. Continuemos. O chefe do chefe do chefe é o presidente da república. Aquele que tem mais moral do que qualquer um para falar de ética... na opinião dele próprio.

Pois o jurista Hélio Bicudo, petista dos antigos, contou à revista Veja que em 1997 o nosso agora presidente, então a figura máxima do partido, teria mandado abafar uma sindicância interna que ameaçava condenar um compadre. O único punido? O autor da denúncia.

Leio n’O Correio do Povo que a assessoria do Planalto planeja o roteiro do presidente no desfile de 7 de setembro com medo de vaia. Mas por quê? Se eu tivesse um bundão gordo, Fidelito, e o movesse em andanças festivas por aí, não teria medo. É mais fácil punir um cidadão cumpridor de seus deveres, que gasta seu tempo trabalhando, do que quem tem tempo e dinheiro para se defender de um ataque pífio.

Mais que pífio, cá para nós, o ataque é culpado. Velhas raposas simulam surpresa com a atual baixaria, como se os pudesse chocar. Como se o Severino tivesse começado a severinar agora. Como se o Roberto Jefferson só soubesse demais sobre o governo atual.

Os culpados, situacionistas em delírio persecutório e oposicionistas moralistas, ainda acham que enganam, mas são maus atores. Só lhes resta esperar que tudo se resolva como nos velhos tempos. Nervosos como gato em dia de faxina, esperam que apareça logo El Malo para ser culpado e remir a todos. E El Malo não vem...

Los Malos

Publicada n'O Taquaryense em 3 de setembro de 2005.

Fidel, o papo sobre tele-catch e seus bandidos e mocinhos que te contei na última carta tem inspiração numa aula. Aproveito para te contar como foi e para lembrar de um mestre muito diferente do doutor Tapir Hirsuto.

Era a década de 1980 e eu fazia Engenharia na gloriosa UFRGS. Mestre Elói Venâncio nos convidou a apresentar temas de Economia, o assunto da disciplina. Olha que incrível: houve vários voluntários, eu inclusive.

Apresentei uma resenha do livro A Trilateral, sobre o novo capitalismo. Havia uma passagem misteriosa para mim: falava do suborno do príncipe Bernardo da Holanda, em 1976, pela Lockheed. O livro só nomeava o subornado e a generosa empresa, sem outro detalhe qualquer.

Mestre Venâncio explicou que o suborno era para empurrar aviões da Lockheed para o governo da Holanda e que houve mais uma torcida do Corinthians de subornados pelo mundo. Também revelou como essas coisas se resolvem quando alguém é flagrado: elege-se “El Malo”.

Inspirado no tele-catch, El Malo faz o papel do bandido – o corrupto, desonesto, depósito dos ódios (invejas, na verdade) do populacho. Como no tele-catch, é tudo combinado. El Malo pode até ir preso, mas é muito, muito bem pago.

Claro que não é qualquer um que pode ser El Malo – choveriam candidatos. Senhores de posses e poder costumam eleger um cidadão enterrado no dejeto até o pescoço e detentor de segredos terríveis (para os tais senhores) para levar a culpa toda. Para fazer o papel, El Malo ganha uma compensação para lá de compensadora.

Mas, Fidelito, eu comecei a escrever esta história quando a CPI dos Correios estava no início. Queria observar a escolha d’El Malo, mas agora já me perdi. Reviravoltas demais! Ficou de um jeito que não sei dar palpite.

Nosso presidente? Ele não viu - faz o papel do juiz tolerante com o lutador trapaceiro. Roberto Jefferson? Bom candidato inicial, mas virou o jogo com brilho. Marcos Valério? Está parecendo a lagartixa que, no momento do perigo, abandona o próprio rabo como se objeto estranho fosse. Até reconhece que é seu, mas...

Mas gente demais buliu com essa cauda, fazendo o mineiro careca perder as credenciais, tornando-se inelegível para El Malo. Tem que ser um em quem a culpa grude (nisso ele está com tudo), mas que não arraste junto a horda de políticos que já fazem parte do cordão.

Quanto mais aumenta o bando dos infectados por evidências de corrupção, maior a urgência de se escolher logo El Malo e estancar a epidemia. A gravidade da coisa pode ser sentida no surto de um senador oposicionista que desatou a lançar impropérios ao presidente da República. Foi raiva ou inveja?

Tudo porque o financiamento de campanha do senador foi açodadamente posto sob suspeita por um deputado governista. O destempero do senador é inadequado para um homem inocente.

Felizmente, há sinais de que os homens de bem cederão ao apelo da razão. Especula-se um acordo partidário para retirar do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara o processo de cassação do deputado Roberto Jefferson. Quem sabe ainda salvam-se todos? Senão, quem resta?

No Senado: Eduardo Suplicy? Pedro Simon? Dá para encher a mão? E na Câmara? Denise Frossard e quem mais? Sobrariam só uns gatos pingados. Perdão! Sobrariam só uns não-gatos pingados.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

El bueno y el malo

Publicada n'O Taquaryense em 27 de agosto de 2005.

Caro Fidel, confesso que me causam certo asco essas cenas de "vale-tudo" que piscam na tela da TV quando eu zapeio pelos canais de esporte. Não gosto de ver gente se espancando até estropiar. É uma competição nada saudável. Não entendo como podem considerar esporte.
Até no boxe, que é esporte olímpico, o meu desgosto já se equipara ao interesse esportivo. A luta em si é bonita, mas já é hora de reconhecer que é mais estupidez do que esporte. O cérebro de um boxeur não resiste a tanta pancada. Vira mingau, está provado.
Porém, por algum motivo, parece que têm mercado garantido os programas de luta. Deve ser algo impresso na placa-mãe do cérebro masculino. Algumas mulheres também gostam, mas os barbados são mais fãs da pancadaria.
Quando eu era pouco mais do que um nenê, tinha fascínio pelo tele-catch, uma espécie de luta-livre em que marmanjões se soqueiam de um jeito bastante ridículo e ensaiado. Uma presepada. Quem é jovem não chegou a conhecer esse teatro da porrada.
Estou falando do início dos anos 1970. Não tínhamos permissão, eu e meus irmãos, para ver a luta. Porém, quando ficávamos com a avó, implorávamos até ela deixar. E, claro, tínhamos nossas preferências. Igualmente óbvio é que preferíamos os mocinhos, os do bem.
Eu lembrei que o Ted Boy Marino era um dos principais mocinhos, equivalente a um galã de novela. Mas tive de ir à web para refrescar a memória sobre o Fantomas e a Múmia, que eu pensava que eram bandidos, só que um sítio diz que eram de um grupo intermediário. Bandidos, mesmo, eram o Rasputin, o Verdugo e companhia.
Os golpes eram acrobáticos. O principal era a “tesoura voadora”, na qual o lutador se jogava com os pés em volta do pescoço do inimigo e o jogava na lona. A gente torcia, xingava, uivava. Às vezes havia briga de duplas ou até mais gente – uma apoteose.
Os mocinhos costumavam usar roupas claras. Tinham o cabelo bem aparado, eram simpáticos, atléticos, depilados no sovaco e jamais usavam golpes baixos como espremer limão no olho do oponente, morder ou espetar os dois dedos nos olhos do rival, o que era contra as regras.
Já os bandidos eram feios, sujos, peludos, mal-humorados, usavam roupas escuras e dirigiam ofensas à platéia. Começavam surrando o mocinho, usando golpes baixos com a conivência do juiz, que fingia não ver. A torcida ficava muito contrariada. Vez por outra alguém tentava subir no ringue para bater no juiz.
No fim, porém, o bem vencia. Ted Boy Marino se recuperava da surra e aplicava uma seqüência de tesouras voadoras no bandido. Daí, qualquer coisa valia e fazia a platéia delirar. Até pisão no braço e joelhada no estômago. Afinal, era o bem contra o mal! Mal sabia eu, nos meus tenros aninhos, que era tudo combinado antes.
Assim era, Fidelito. Fácil de separar o vício da virtude. O bem era limpo, simpático, cortês e jamais jogava sujo. O mal era imundo, mal-encarado, grosseiro e picareta por natureza.
Com inocência infantil, dava para acreditar nessa história. Na verdade, muito adulto também acreditava. Já quem não acreditava tendia a desaparecer. Desaparecer como os dinossauros, como os cantores do rádio, como os amigos do bairro (como dizem certos versos argentinos).

O professor Tapir ataca outra vez

Publicada n'O Taquaryense em 13 de agosto de 2005.

Fidel, andam dizendo por aí que o emérito professor doutor Tapir Hirsuto, que te apresentei aqui outro dia, agora está servindo a pátria em Brasília, no Congresso Nacional. A julgar pelo videozito que recebi hoje pelo e-mail, mestre Tapir agora empresta o seu brilhantismo literário à Câmara dos Deputados, no papel de redator de peças legais.
O videozito mostrava um repórter de não sei qual jornal anunciando o decreto legislativo de um referendo popular para outubro de 2005. A pergunta que será feita no referendo é (veja se não é obra de artista): "Você é contra a proibição da comercialização de armas e munição em todo o território nacional?"
Tivesse eu o mesmo talento do redator, estaria lá em Brasília. Como não tenho, arrisco aqui algumas sugestões alternativas para a pergunta do referendo: "A proibição da venda de armas e munições você não acha que não deveria ser liberada?" "Você é desfavorável à proibição da liberação de gente não andar desarmada?" "O que você acha de a gente entregar logo o país para alguns gringos que saibam ler e escrever?"
Desanimei, Fidelito. Cansei. Gastar o que se gasta todo mês com essa Câmara, com trocentenas de assessores, aspones, cunhados e parentes e não conseguir sequer enunciar uma pergunta decente? Mas o pior era o que vinha depois, no mesmo videozito de que te falei.
Em seguida à declamação do poema que é a pergunta do referendo, o repórter encontrou o presidente da casa legislativa, o deputado Severino Cavalcanti. Consta que a nomeação de doutor Tapir como redator teria sido indicação dele. O sagaz professor, por seu turno, seria um grande admirador do notável representante da vanguarda nacional do atraso.
Inquiriu do primeiro deputado o solícito repórter: Quais são os próximos projetos mais importantes a ser votados no plenário? Ao que respondeu Severino (está gravado, não é invenção minha): “Temos vários projetos aí, inclusive a reforma tributária, que deverá ser votada dentro de pouco tempo. Temos o... (longo silêncio) o... (longo silêncio seguido de “assopro” do assessor) ... a reforma política, temos a... (longa pausa)...”
E Severino desistiu de tentar lembrar de algum projeto importante. Das duas, uma: ou não há qualquer projeto importante para ser votado pela Câmara, ou o seu presidente tomou sonífero. É tanta lerdeza, Fidelito, que dá para desconfiar que tudo o que se tem feito na política nacional tem a inspiração do professor Tapir Hirsuto (noves fora a roubalheira, para a qual nosso herói não tem pendor nem talento).
Senão, vejamos: qual é a idéia do Congresso para que a bandidagem deixe de roubar a população? Desarmar a população, óbvio. Os indicadores educacionais são pré-medíocres. O que fazer? Deixar de medir o desempenho, claro, para a gente não passar tanta vergonha.
Os políticos roubam demais? Ora, é só criar mais impostos e financiar a campanha deles, desde que se continue mantendo em segredo a ficha corrida de cada um. A ficha corrida, o boletim escolar, o psicotécnico. Afinal, é preciso garantir o direito de todo ladrão, imbecil ou maluco de candidatar-se incógnito para nos (?) representar. Eu, hem? Não; não é nesses aí que eu voto para me representar.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

As aventuras do emérito professor doutor Tapir Hirsuto

Publicada n'O Taquaryense em 11 de junho de 2005.

Fidel, caí na tentação. Comecei a falar de Educação, dos abusos contra a língua, e isso é que nem balde de caranguejo: Puxa um causo e vem outro enroscado. Pois aí vai a história do professor Tapir Hirsuto, conforme prometi.
Tapirzinho começou cedo. Decorava bem a matéria, era um aluno exemplar e quase sempre tirava 10. O professor perguntou quanto vale a hipotenusa? Ele sabe: “O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos”.
“Muito bem, Tapirzinho!” Recebeu o elogio do professor e, não satisfeito, debochou do colega que queria saber o comprimento de uma ponte num vão de 15 metros com um desnível de 2 metros. Há gente besta neste mundo! Em vez de prestar atenção na matéria, perturbam com perguntas.
De tanto decorar a matéria para tirar 10 e decorar o boletim com notas excelentes, foi tomando gosto e resolveu ser professor. O professor Tapir Hirsuto começou a carreira como alfabetizador, nas primeiras séries.
Um dia, passou uma tarefa para casa: escrever o nome de 5 animais selvagens. Fascinado pelos animais africanos que viu numa revista, Marinho, de 6 anos, tascou: “Ocapi, feneco, facócero, tetraz e órix”. Tapir leu a resposta do Marinho em tom de deboche, em voz alta, para a classe. E sentenciou: “Isso não existe”.
Sem pestanejar (nem processar o professor pelo constrangimento – naqueles tempos nem se sonhava com essas coisas), Marinho escreveu outra lista: “Leão, girafa, elefante, tigre e macaco”. Não valia a pena discutir com um professor que é um Tapir Hirsuto.
E o Tapir fez faculdade, depois fez o mestrado e o doutorado. Professor doutor Tapir Hirsuto. É uma figura importante no meio universitário. Sempre que se reúne algum comitê de “notáveis”, o Tapir está no meio. Conselho Federal disso, “representante” (eleito por ninguém) daquilo, autoridade incontrastável.
Ele não é uma unanimidade, mas muitos o adoram por causa da sua curiosa linha de raciocínio. Por exemplo: um estudo da OCDE mostrou que os brasileiros de 15 anos, mesmo os que estudaram em escola particular, não entendem o que lêem. Tapir Hirsuto tem uma solução para isso: parar de fazer esses testes.
Ele também gosta da reserva de mercado profissional. Não importa que químicos ganhem prêmios Nobel de Medicina. Piaget não pode lecionar para a Pedagogia. Freud não pode dar aula na Psicologia. Peter Drucker não entra na faculdade de Administração. Se quiserem, têm que fazer um maravilhoso curso de graduação. Daí, terão a oportunidade de estudar nos livros que eles próprios escreveram.
Já um mané que nunca pensou nem escreveu nada pode dar aula no curso em que se graduou. E que se pague o mesmo salário para o que resiste às ofertas estrangeiras porque quer ficar no Brasil e para o que se esconde na universidade porque não teria espaço em outro lugar. Bela lógica, né Fidelito? Como diz o tango, “igual un burro que un gran profesor”. Pudera termos tantos escravos dublando professores.
Um famoso centroavante barbudo do Corinthians disse: "Mandai educar vosso filho por um escravo, e, em breve tempo, em vez de um escravo, tereis dois". Hein? Estão me cutucando, aqui, dizendo que não foi jogador do Corinthians. Parece que jogou na Grécia. Sei lá. Acho que eu faltei a essa aula.

A pequena notável

Publicada n'O Taquaryense em 28 de maio de 2005.

Caro Fidel, lamento insistir no assunto, mas é palpitante demais para desprezar e tentador demais para resistir. Outro dia te falei sobre um regulamento de campeonato de futebol no qual o artista redator espalhou vírgulas como quem dá milho às galinhas. Isso foi no Sobril.
Hoje quero falar do Brasil, mesmo. O caso ainda é a vírgula. Li uma frase do saudoso (pelo menos para quem gosta das letras) ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill. Eu não entendi e, se não fosse do Churchill (se é dele, é bom), nem tentaria duas vezes.
Dizia assim: “A imaginação nos consola daquilo que não podemos ser, o humor daquilo que somos.” Nonsense. O humor daquilo que somos é algo que não podemos ser e o consolo para isso é a imaginação? É o que diz a citação. Mas... Depois de muito pensar, concluí: o escrevinhador-copiador emasculou a citação churchilliana de uma vírgula e virgulou onde um ponto-e-vírgula faria melhor o serviço.
Devolva-se tudo ao seu lugar e emerge o talento do lorde: “A imaginação nos consola daquilo que não podemos ser; o humor, [nos consola] daquilo que somos”. Assim, com a vírgula marcando a elipse do verbo.
Por que essa inimizade com a língua? Por que essa violência, essa perseguição? Que mal te fez Camões, ó redator? Era só cutempeistar a notinha que veio da agência de notícias. Tinhas que pôr teu garrancho? Tinhas que inventar?
E por falar em vírgula, outro delinqüente: Paulo Coelho. Escritor brasileiro mais bem-sucedido (junto ao público, que é o que interessa), sujeito cativante, que aparenta, entre tantas qualidades, dispensar a arrogância e o orgulho em excesso. Porém, não sei por quê, despreza o esquálido sinal sintático.
Já li que ele não tira os erros de português de seus livros para não quebrar “o encanto”. Agora, leio que ele disse “Qual é o problema de uma vírgula entre sujeito e predicado?” Ora, nenhum, para quem não se importa que o leitor não entenda o que o escritor quis dizer.
E eu que fiz um esforço tremendo para conseguir ler um livro dele... Achei que fazia todo o sentido ler um livro do escritor brasileiro mais lido no mundo. Lá fui eu.
Em uma sentença no meio da página 100 da 148ª edição d’O Alquimista (ou da página 148 da 100ª edição, já não lembro...), há uma palavra que é advérbio para o que vem antes e é verbo para o que vem depois. Suportei e continuei lendo para concluir que ele é, mesmo, um mau redator e um excelente contador de histórias. Tanto sucesso não poderia ser à toa.
Mas por que considerar-se gênio e dispensar a ajuda profissional de quem poderia aprimorar o texto, melhorando o que é confuso e corrigindo as besteiras? Se ele quis entrar para a Academia Brasileira de Letras é porque desejava o reconhecimento, creio eu. Ou há outro motivo?
Qual seria – achincalhar-nos a todos que prezamos as belas letras? Se for dada a um leitor a permissão de protestar, eu diria: qual é o problema de admitir um erro e corrigi-lo?
Pronto, Fidelito. Comecei. Não era para ter puxado esse assunto. Agora é tarde. Na próxima, vou ser obrigado a te contar a história do professor doutor Tapir Hirsuto, um dos notáveis da educação brasileira. Porém, não tão notável quanto a vírgula, a pequena notável.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A serendipidade severina

Publicada n'O Taquaryense em 30 de abril de 2005.

Fidel, um dia desses descobri essa palavra que tem ano, mês e dia de nascimento: 28 de Janeiro de 1754. Foi quando o inglês Sir Horace Walpole a escreveu numa carta a seu amigo Horace Mann. Sacou a idéia do livro Os Três Príncipes de Serendip.
No livro, os 3 nobres passeiam pelo Sri Lanka, a ilha que já se chamou Ceilão, que já se chamou Serendip, e fazem descobertas de coisas que não procuravam descobrir, numa mistura de acidente e sagacidade. Daí em diante, a faculdade de fazer descobertas boas e inesperadas “por acidente” virou serendipidade.
Isso lembra algumas descobertas famosas. Por exemplo, quando o rei de Siracusa desconfiou que estava sendo roubado pelo ourives que fez sua coroa, pediu a Arquimedes que investigasse a composição. Já se conhecia a densidade do ouro, portanto qualquer mistura indevida seria flagrada pela densidade alterada da coroa.
Era preciso saber o peso da coroa – fácil – e o volume. Arquimedes tinha criado fórmulas para calcular volume, daí a convocação do rei. Então a cobra fumou – como medir o volume de algo com formas tão irregulares?
Diz a lenda que, ao entrar no banho e ver a banheira transbordar, Arquimedes sacou que o volume deslocado era igual ao volume imerso. O resto da história é conhecido: saiu gritando “Eureka! Eureka!”, peladão.
Também dizem que Newton, inglesamente tomando chá no jardim, viu cair uma maçã e pescou que a força que a atraíra deveria ser a mesma que mantém os planetas orbitando o sol. A penicilina também foi descoberta por acaso – Fleming percebeu que as bactérias que estudava morriam na presença de certo tipo de bolor. Foi estudar o bolor. Pimba! Penicilina.
Não é incomum descobrir algo por acaso, mas nem sempre são descobertas venturosas. Na nossa busca por democracia, por exemplo, queríamos Tancredo e encontramos Sarney. Já na eleição seguinte, topamos exatamente com o procurado: o candidato que forjou uma arruaça do adversário, travestindo seus capangas como contrários.
Mais tarde, pagou para que a ex-mulher do oponente aparecesse com uma denúncia grave e mentirosa. Tudo descoberto e divulgado pela grande imprensa antes da eleição, mas elegemos o personagem. Êta pontaria nossa, hem Fidelito?
E hoje? Na tentativa de aperfeiçoar o sistema de controle remoto da Câmara dos Deputados, que vige (virge!) desde o governo anterior, o que se encontrou foi a eleição de um potencial representante das trevas para o terceiro cargo mais importante da república.
Encontraram Severino. E não é que o cabra resolveu tirar a pilha do controle remoto? Por incrível que pareça, talvez esteja aí a descoberta de uma Câmara decente, autônoma. Dizia Picasso, o artista, que a inspiração existe, mas tem que te encontrar trabalhando. Aproveitar a oportunidade só depende de nós.
Eu ia contar que os 3 príncipes de Serendip, depois de muito passeio, chegam à Pérsia do rei Bahram. No caminho, conversam com um mercador que busca um camelo desaparecido. Eles não haviam visto camelo nenhum, mas o descrevem tão bem que o mercador desconfia, corre até o rei e os denuncia. Ao chegar, o rei lhes dá a oportunidade de escolher: morrer ou entregar o camelo. Mas aí já é fábula demais.

Bons tempos, aqueles

Publicada n'O Taquaryense em 21 de maio de 2005.

Caro Fidel, a luta entre o bem e o mal está de volta. Se algo separava a geração que é jovem agora da que foi jovem na época da ditadura, era essa aparente falta de uma fonte primordial de ruindade, que nos meus tempos de guri era farta: torturadores, censores, deputados estaduais fazendo empréstimos especialíssimos na Caixa Estadual...
Não estou dizendo que essas coisas acabaram. É notório que alguns perpetradores seguiram na carreira política e até hoje ocupam cargos importantes. Também há novos estrupícios. Porém, reconheçamos: temos democracia.
Quem diz que não temos, que não somos independentes, é aquele tipo que só reclama e não tem disposição ou paciência para progredir no passo que nos permite a nossa capacidade. Não há baioneta apontada para a nossa cabeça. Ponto. Daí para a frente é conosco.
Fechando parêntesis e voltando à juventude, todo mundo sabe que a pandorga sobe contra o vento. A gente precisa de uma certa dose de oposição para crescer. Ter tudo a favor pode parecer muito lindo, mas é um sonho ingênuo, próprio de quem teve tudo contra.
Senão, vejamos a onda atual na educação das crianças: os pais precisam impor limites. Vindos de um mundo estúpido que só os impunha, acharam que suprimi-los criaria liberdade, mas acabaram criando chatos que gritam e sapateiam – para ganhar chupeta ou um carro 0 km.
Eis que surge um fato novo para ajudar a construir o caráter, separar a atrocidade da virtude: o fundamentalismo cristão. Na matriz, a coisa começa pelo próprio presidente, que agora, inclusive, foi até eleito de verdade. Jorge Bucha é a fina flor do fundamentalismo.
No Brasil, ainda não chama tanto a atenção, mas não é de se desprezar: alinham-se contra a mania de dar bola para argumentos e evidências o presidente da Câmara dos Deputados, os governadores Garotinhos e uma legião de deputados do baixo clero.
No Rio, o governo resolveu catequizar com dinheiro público. Em vez de Darwin, Adão e Eva – mesmo que o assunto seja Biologia e não Cultura Religiosa. Cientistas e religiosos conviviam em relativa harmonia, mas com os fundamentalistas não tem conversa – eles têm a Verdade.
Não sei se aqui vai chegar a acontecer o que promete virar moda na América do Norte: alunos a processar professores que apresentarem a teoria da evolução, essa tese abusiva, só porque é baseada em fatos e argumentos. Mas nós não somos tão afeitos a brigar por idéias.
O fundamentalismo enfrentado pela geração mais antiga foi político. A universidade sempre foi um foco de resistência, mas houve gente cooptada, como um botânico soviético que negou a existência dos genes só para conquistar a desgraça acadêmica e as graças de Stalin.
Claro que a polaridade ideológica exacerbada gerava algumas ações pitorescas e fora de foco. Fazer greve de Coca-Cola para protestar contra o imperialismo ianque, por exemplo. Ou saciar o masoquismo enfrentando a polícia aos gritos de “me bate, me chuta!”.
Houve, também, o caso de um candidato a líder sindical que fez campanha com o lema “Chega de basta!”. Ganha a eleição para presidente do sindicato, mudou-se de mala e cuia para a sede, pois estava na penúria. Bons tempos, aqueles.

Guerra particular, estrago geral

Publicada n'O Taquaryense em 2 de abril de 2005.

Caro Fidel, tu lembras do bafafá envolvendo o cineasta João Moreira Salles, lá por 1997? Ele andava pelos morros do Rio com o traficante Marcinho VP (famoso desde que o cineasta Spike Lee pediu sua autorização para gravar um clipe do Michael Jackson no Morro Dona Marta).
VP foi morto na cadeia em 2003. Existe um homônimo por aí, a leitora não se confunda. Segundo o ex-chefe da polícia carioca Hélio Luz, o Marcinho do Dona Marta era só um figurante no palco do crime, um falastrão que foi confundido com o outro, esse sim, cruel e temido, e deixou pegar o apelido VP. Ou seja, o amigo de Salles seria falsificado. Vai saber...
João chegou a ser indiciado pela polícia civil carioca, acusado de favorecer o traficante, a quem pagava uma bolsa em dinheiro em troca de contar a história dos morros. Para João, era uma tentativa de afastar alguém do crime. Ingenuidade demais? Não sei. Só sei que não se pode culpá-lo pelo crime no Rio, como fez certo governadorzinho.
Naquele tempo, o Rio empreendia uma operação de guerra contra o tráfico, premiando os policiais que matavam mais bandidos. O lema era “atire primeiro, pergunte depois”. Não deu certo contra as drogas e aumentou o tráfico de armas, inclusive da polícia para os bandidos. João criticara essa política. O indiciamento seria uma vingança do governo.
A coisa toda fica mais interessante quando se assiste ao resultado das andanças de Salles e Kátia Lund pelas favelas cariocas: o documentário Notícias de uma Guerra Particular (1999). O filme consegue driblar a falta de destreza mental da maioria das discussões sobre violência. Não sataniza polícia nem bandido, mostra de forma bem didática por que a coisa é como é. O título vem da entrevista com um jovem policial: ele diz que há uma guerra particular entre polícia e tráfico, só que o povo morador fica no meio do tiroteio.
É chato e inútil ficar berrando “que barbaridade”, então só conto um trecho. O ex-delegado Hélio Luz faz uma análise bastante elucidativa. Ele descrê da história de que o tráfico substitui o estado, dizendo que não há competência para tanto. Com gente semi-analfabeta, o tráfico só consegue fazer algum assistencialismo (o que às vezes é mais do que faz o estado, penso eu).
Também faz perguntas: Para que produzir fuzil hoje? Para que uma fábrica de armas na Suíça ou nos EUA faz isso? Por que não fecha? O povo quer uma polícia que não seja corrupta? As primeiras respostas são fáceis, a última ele facilita: uma polícia honesta executaria mandado de busca e apreensão na zona sul do Rio, em vez de só invadir casa na favela.
O agora deputado estadual conta uma história pitoresca dos tempos de delegado (parecida demais com a que eu escutei de um delegado do interior). Começando a carreira numa cidade pequena, prendeu bandidos, ficou popular, convidado em eventos sociais, jurado em concurso de miss.
Um dia, um segurança de supermercado bateu num garoto que roubou. Hélio autuou os dois. O gerente virou fera: Como é que tu me fazes uma coisa dessas? Nós somos de bem! Mais adiante, um fazendeiro cometeu homicídio e Hélio prendeu. De figura simpática e prestigiada na cidade, virou persona non grata.

Parem esse moço!

Publicada n'O Taquaryense em 23 de abril de 2005.

Fidel, eu soube de um evento aí em Taquari. Parece que faz parte do III Encontro Nacional de História da Mídia, no campus da Feevale, em Novo Hamburgo, mas no último dia o pessoal se bandeia para a terra da laranja. A função é inaugurar o Museu-Vivo de Comunicação “O Taquaryense”, sob a organização da Univates, e rodar uma edição especial do jornal.
Não sei se tu te dás conta da dimensão do fato, neste ano que também é o do centenário de nascimento de Érico Veríssimo. Não sei se já viste na mesma mirada uma onça, um tapir e um lobo guará soltos no mato, ou um álbum completo de figurinhas dos Cracões da Copa de 70, ou um computador que ainda funcione com Windows 3.11. Mas, se tu tiveres a oportunidade, vai ver algo muito mais raro que todas essas coisas: a tirada de uma impressão d’O Taquaryense, talvez o único jornal do mundo que se mantém ativo com a mesma tecnologia do século XIX.
Ainda não posso dizer com certeza se é o único no mundo, mas estou perguntando aos estrangeiros e te conto quando tiver uma resposta convincente. O que eu descobri, Fidelito, é que O Taquaryense não é só o 2º jornal mais antigo do Rio Grande, como também é o 10º mais antigo do Brasil.
Pelo menos é o que disse A Tribuna do Norte (7º mais antigo) recentemente. Espia só: Diário de Pernambuco (1º-PE), Jornal do Commercio (2º-RJ), O Mossoroense (3º-RN), O Estado de São Paulo (4º-SP), A Província do Pará (5º-PA), O Fluminense (6º-RJ), Tribuna do Norte (7º-SP), Gazeta de Alegrete (8º-RS), Diário Popular (9º-SP) e O Taquaryense (10º-RS).
Só que nem os 9 mais velhos, nem qualquer outro que eu conheça, ainda fazem a montagem manual dos tipos. Por isso a edição especial, com tanta gente de fora para ver, bem como os projetos de alunos e professores da Univates são tão bem-vindos. Aliás, andei vendo na internet um filme de 1 min feito pelos alunos bolsistas do Projeto Cultural O Taquaryense: ”O perseguidor“, curta de horror. Já fico curioso para saber o que mais eles estão preparando.
O jornal vem sendo mantido em família desde a criação. Antes de Plínio Saraiva assumir funções gerenciais em 1947, o jornal foi dirigido, entre outros, por seu pai e fundador, Albertino, e por um irmão, Mario. De lá até 2004, seu Plínio fez o possível e o impossível para manter o jornal ativo, nem que para isso precisasse recorrer às próprias economias.
Não é à toa que há pouco mais de meio ano, quando seu Plínio deixou nossa companhia, falei do meu encontro com um mito do jornalismo e descrevi aqui nessa coluna o cuidado que ele dedicava a cada edição, a cada exemplar d’O Taquaryense. Comparei a presença dele à do “grande dragão da poesia”, Quintana – nativo da terra do primeiro jornal gaúcho e 8º do Brasil.
É mole, Fidelito? Seu Plínio dirigiu O Taquaryense por 57 anos, não fruiu as benesses do poder público, manteve uma linha editorial íntegra, com centenas de assinantes, de Taquari à Europa, conseguiu o apoio da comunidade para instalar o jornal em sede própria e construiu as condições para que o jornal continue ativo, mantendo suas características. Imagina se começam a aparecer outros jovens como ele. Não é possível! Assim esse país vai acabar indo para a frente. Parem esse moço!

Viagem a Cais Jovial

Publicada n'O Taquaryense em 19 de março de 2005.

Fidel, hoje vou te contar um pouco mais da minha viagem de férias ao Sobril, esse país fictício que se parece muito com o nosso, mas não é o nosso. Mais especificamente, ao estado do Sobril Meridional. Peguei o rumo sul pela Briói, a auto-estrada que acompanha o litoral. Deixei a Ilha Mágica e me fui a Cais Jovial, leal e valerosa capital do Sobril Meridional.
Cais Jovial, que costuma ser uma cidade grande, no alto verão se transforma numa cidade fantasma. É um calor de fritar ovo no asfalto. Pipoqueiro nem precisa de liquinho para estourar a pipoca, de tão quente que é. Por isso, quase todo mundo dá no pé em direção ao litoral. Muitos vêm para a Ilha Mágica pela mesma Briói, caminho inverso ao meu.
Chegando à leal e valerosa, fiquei muito impressionado com a decadência educacional, visível nas ruas da cidade. Não falo da ruína da polidez, que isso é um fenômeno mundial, mas do que é ensinado na escola – escrever, soletrar, ler de carreirinha, ler só com os olhos, fazer contas de cabeça, regra de três, noves fora, asserção e razão, essas coisas.
A capital, bem como o estado, costumava ser uma referência nacional de cultura e educação. Porém, em poucas décadas, algo aconteceu que fez despencar a qualidade do primário outrora bem-feito dos meridionais. As placas de trânsito são boas amostras da nova burrice.
Por exemplo, quem cruza as duas pistas da avenida que margeia o Arroio Esgoto, no sentido do bairro Cidade de Pedra, logo depois que passa o Ginásio da Milícia, depara-se com uma situação esdrúxula, patética. Se deixar a avenida, passando a circular pelas ruas do bairro, em cada esquina encontra uma placa “sentido obrigatório à esquerda”. [Fidel, muito depois de escrever estas mal tecladas eu vim a saber que não é um fenômeno localizado. As placas equívocas estão espalhadas pela capital e até pelas cidades do interior... Pobre Sobril Meridional.]
Ou seja, a única forma de obedecer à sinalização é ficar dando voltas na quadra até que acabe a gasolina. Seguir em frente no cruzamento é infração de trânsito. Nesse caso, o melhor a fazer é abandonar o carro, pois o caminhão-guincho não pode entrar lá, sob pena de também ficar preso, rodando em círculos.
Pobre Cais Jovial... Era tão orgulhosa de seu povo educado, mas hoje em dia escancara em praça pública a realidade cruel da ignorância. Fica claro, para quem circula pela Cidade de Pedra, que o que se pretendia comunicar era “proibido virar à direita”. Só que quem pôs as placas não sabe que isso não é o mesmo que “sentido obrigatório à esquerda”.
Depois, verifiquei que o problema não se restringe à Cidade de Pedra, mas está espalhado pela capital. Deve ser por isso que andava deserta... Agora, cada vez que um nativo de Cais Jovial me perguntar “Por onde andas?”, vou responder: “Por aí, dando umas voltas”.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Bosta de minhas férias

Publicada n'O Taquaryense em 12 de março de 2005.

Fidel, esquece tudo o que eu escrevi. Coerência perfeita é coisa de carola. Não é porque eu disse “basta” que vou deixar de escrever sobre as minhas férias. É que estas realmente valem a pena contar.
Viajei para Sobril, um país fictício muito parecido com o nosso. O nome vem de sobro, árvore corticeira de características opostas às que o dicionário Aurélio atribui ao pau-brasil – incorruptível e duro.
A bandeira é parecida, só que em vez de “Ordem e Progresso” sobre uma faixa branca, tem “Com Jeito Vai” sobre uma banana. A língua que eles falam é também muito parecida com o português, mas não é português. Por exemplo, o cidadão trabalhador e pagador de impostos eles chamam de octário. Povo é octariado. Governo é sócio autoritário (SA).
O octariado adora o SA, tanto que trabalha a metade do ano só para sustentá-lo, recebendo quase nada em troca. Para felicidade do octariado, o presidente aumentou os impostos federais e, no estado do Sobril Meridional, o SA estadual também aumentou.
O SA estadual anterior tentou aumentar alguns em troca de desconto em outros, mas a oposição não deixou, porque não teria a menor graça. Imagina se é no Brasil, Fidelito – o povo ia para a rua bater panela! Mas lá eles gostam.
Também há empresários octários. Pagam impostos, dão nota fiscal, fazem alvarás – eu não entendo por quê. Isso é muito ruim, porque os octários, quando vão às compras, acham que a loja tem que dar nota. Por exemplo, na Ilha Mágica, lugar paradisíaco onde todos querem estar no verão, quase não há empresários octários, mas bastam uns poucos para o octariado alimentar o mau costume de implorar por uma nota. É uma cena triste de ver, porque eles resmungam, chateiam, mas não conseguem.
O povo sobrileiro é muito empreendedor. O octário que deseja abrir uma empresa costuma recorrer ao financiamento do FAT, que não é Fundo de Amparo ao Trabalhador, mas Família, Amigos e Tolos. Eles dizem que só razões do coração ou a tolice podem justificar o investimento numa nova empresa, com todos os alvarás, certificados, impostos regulares e inventados que virão.
Como em qualquer país, os políticos sobrileiros não têm uma fama lá muito boa. O octariado os aprecia tanto quanto aos ladrões e traficantes. Mas o detalhe interessante é que a democracia deles é perfeita: não só os supracitados podem roubar – qualquer mané pode!
Vê o caso do sócio toureiro (ST), Fidelito. É um sujeito que abana uma flanela para os motoristas que estacionam, como quem toureia. STs não são octários, não são responsáveis por roubos ou avarias, mas cobram dos octários que estacionam na rua. E eles pagam. Sorte dos ST que estão no Sobril e não aqui – seriam presos por vagabundagem e extorsão, né?
Mas o que me cortou o coração foi conhecer Tambor do Sobril, uma cidade maravilhosa, muito linda e muito violenta, e é fácil ver a razão: o tráfico de drogas movimenta alguns bilhões de dólares por ano. É só olhar para o luxo das favelas nos morros, que é onde vivem os traficantes, para entender o ódio no coração da pobre gente que mora em coberturas duplex nas avenidas à beira-mar. Mas ano que vem eu volto.

Basta de ‘Minhas férias’

Publicada n'O Taquaryense em 5 de março de 2005.

Fidel, já na carta que inaugurou esta coluna eu te falei o quanto achava penoso, no tempo do colégio, ter que atender à professora e escrever uma redação sobre as férias, todo santo começo de ano. Era embaraçoso, chato, pouco imaginativo. Um pé no saquinho.
Tanta coisa interessante e a rabugenta queria que eu contasse se tinha viajado de ônibus ou de carro. Mas professor é que sabe das coisas, né? Por isso é que, quando fui dar uma aula sobre chuva para uma turma de 2ª série, mandei sossegar o pirralho que quis falar sobre as primeiras chuvas na atmosfera terrestre, cheia de metano. Que pivete insolente!
Houve um certo março no qual, como sempre, a professora pediu uma redação sobre as férias. Que saco. Eu estaria mais disposto a relatar o campeonato de sumô de besouros chifrudos vencido no dia anterior. Quero dizer, o meu besouro é que ganhou. Não foi mole.
Para quem não conhece, o besouro chifrudo é um mini-rinoceronte com um baita chifre. Ou, para quem curte desenho animado das antigas, pensa no Tundro dos Herculóides – é muito parecido, só que o besouro chifrudo é preto e não cinza, não atira pelotas pelo chifre (infelizmente) e tem só 6 pernas.
Tive a consultoria do Chulé, meu amigo e headhunter de besouros. Ingenuamente, eu queria ficar com o maior dos três que encontramos no jardim, mas o conselho perito do Chulé me ajudou a selecionar aquele que mais vezes desvirou com o chifre a latinha emborcada com que o aprisionamos. Eu não ganharia o torneio com um besouro que desiste fácil! Mas atenção, jovem leitor: não vá matar o bicho no cansaço.
O sumô de besouros, mal comparando com os jogos de adulto, é um esporte caro, assim como o golfe e o iatismo. Precisa (além dos besouros chifrudos, hoje em dia raros) de um tubo de PVC que permita passar os besouros sem muita folga, no qual se faz um rasgo longitudinal de poucos milímetros para deslizar o chifre saliente. O comprimento ideal é de 10 a 15 cm (lembrem-se: é sumô, não maratona).
Funciona assim: colocam-se os besouros frente a frente no meio do tubo e vence quem empurra o outro para fora. Existe uma variante, o cabo-de-guerra de besouro chifrudo, no qual se amarram os chifres nas pontas de uma linha e vence quem conseguir arrastar o outro. Mas o sumô é muito mais empolgante, pois requer certa habilidade para evitar que os besouros escolham ambos recuar. É um segredo de negócio.
Devo confessar que não sei se os guris e gurias de hoje são aporrinhados com a exigência de uma dissertação sobre as férias todo início de ano. Mas que não carece, não carece. Tenho certeza de que há, no universo infanto-juvenil feminino, temas tão palpitantes quanto o sumô de besouros chifrudos.
É certo que os guris de hoje têm recursos que eu não tinha. A gente usava uma tecnologia analógica. Eram lupas (“raios laser”), réguas (catapultas), pedaços de cartolina (velas), palitos de picolé (mastros), chassis de carrinhos, fios e outras coisas que nem conto para que serviam com formigas, caracóis, lesmas e besouros. Nesses tempos politicamente corretos, a sociedade protetora dos animais pode querer meu couro, mas eu tenho esperança de que os crimes estejam prescritos.

Adeus 2005, ano velho

Publicada n'O Taquaryense em 29 de janeiro de 2005.

Fidel, lembras quando eu descobri o que disse o Otto Lara Resende (que no Brasil o passado é imprevisível), só depois de te fazer previsões sobre o passado? Pois fiquei sabendo que o físico Niels Bohr há muito já falou que é difícil fazer previsões, “principalmente sobre o futuro”. Ou seja, essa conversa de previsões sobre o passado e retrospectiva do futuro não tem nada de novidade.
Já que eu comecei a retrospectiva 2005 e me perdi no terrível tema da Educação, permita-me encompridar a conversa para rever como foi 2005 em outras áreas. Xovê... Tu que não lês jornal, adivinha o que o governo fez em 2005, Fidel: cobrou imposto de quem não paga e nunca pagou, ou sangrou mais os mesmos otários de sempre?
Dou algumas dicas: (1) cobrar de quem não paga requer levantar a bunda da cadeira, mas castigar no imposto dos otários exige só uma canetada; (2) quem já paga imposto não tem dinheiro para fazer lobby no Congresso, mas quem não paga tem bufunfa para comprar muita coisa; e (3) há coincidências interessantes entre listas de grandes sonegadores e listas de contribuintes de campanha (o problema é ter a vontade política de produzir a primeira lista e a imprudência de cruzar com a segunda).
Fico me perguntando, Fidelito... Esse povo que governa é mais velho do que eu. Será que quando eles foram crianças (se foram) o Esopo não tinha nascido? Esopo, um grego, aquele das fábulas... Tinha a da galinha dos ovos de ouro, que... Ah, deixa para lá. Se eles não entenderam a moral da história quando eram crianças, não sou eu que vou explicar.
Porém, louve-se a coerência do governo em descrer das fábulas, como a de se endividar e viver deitado eternamente em berço esplêndido. Os governos prévios, fabulistas, nos endividaram até a raiz dos cabelos. Este aí resolveu parar e pagar as contas. Foi meio complicado, em 2005, pagar tanta conta sem dinheiro para comer, morar, vestir e estudar. Mas tudo bem, uma coisa de cada vez.
O importante é que a parte mais carente do país não foi mais castigada do que já é. Sim, Fidelito, eu me refiro aos bancos. Em 2005, o governo poupou essas instituições beneméritas e necessitadas. Nada de pagar imposto para os fundos setoriais, por exemplo.
Aliás, falando em bancos, em 2005 eles continuaram tentando criar à força a certificação digital. Eu digo à força porque eles querem que o governo aprove da mesma forma que se fez no caso da urna eletrônica: brutal, ignorando olimpicamente o conselho dos peritos, esses chatos. Afinal, ninguém seria maldoso a ponto de fraudar a urna eletrônica ou burlar a certificação digital, né? Só a dona Regina, culpada de violar o painel eletrônico do Senado em 2001. Arrudão e ACM já estão de volta.
Só que os bancos têm uma motivação extra, que justifica tudo: se existir a certificação digital, eles deixam de ser responsáveis por eventuais fraudes e violações – a senha é só tua, nega; se saiu dinheiro da conta, azar o teu, o banco não tem nada com isso. Pensa na miséria em que vivem os bancos, Fidelito, comparada com o luxo em que vivem os cidadãos brasileiros, é verás que já era hora de pensar nisso. Afinal, já estamos quase em 2006.

Retrospectiva 2005

Publicada n'O Taquaryense em 22 de janeiro de 2005.

É, Fidel, eu acho que três semanas já é tempo suficiente para fazer uma avaliação do que foi este ano de 2005, tu não achas? Para que esperar dezembro, ou mesmo fevereiro? No fim do ano, todo mundo vai fazer retrospectiva. Não tem a menor graça e eu acho, mesmo, que já deu para sacar o "ano novo".
O Brasil continuou, em 2005, com muito sucesso na execução de tudo o que é meticulosamente planejado. O futebol demonstrou ser o melhor do mundo, a Educação continuou sendo uma das grandes tragédias da história da humanidade, as contas foram pagas, mas a miséria e a violência seguiram galopando.
Apesar de algumas ações para acabar com o futebol brasileiro – favorecimentos, viradas de mesa etc. – nunca mexeram no fundamental: ganha quem bota mais bola para dentro durante os 90 minutos, onze contra onze. Desse jeito, sem que uma comissão de notáveis escolha o vencedor, não vamos conseguir equiparar o futebol a outras áreas da vida nacional.
Na Educação, aí sim conseguimos manter o nível, pois tratamos do fundamental: o sistema é infalível, aniquila 100% das inteligências. Googleia aí, Fidel, pois está na web: “O Americano, Outra Vez”, do físico e prêmio Nobel (1965) Richard Feynman, que viveu no Brasil e fala algumas maravilhas, mas não deixa pedra sobre pedra quando o assunto é Educação. É uma boa leitura para um serão literário.
O professor Feynman descobriu, com grande espanto, que os alunos decoravam definições complicadas e passavam nas provas sem ter a mínima idéia do que realmente se tratava. Pensou que tinha 2 alunos sobreviventes do sistema brasileiro, mas antes de voltar aos Estados Unidos descobriu que um estudara na Alemanha e o outro, sozinho, no tempo da guerra, portanto não se podia dizer que era produto do nosso sistema educacional 100%.
Então reza comigo, Fidelito, até decorar: “Se a maior parte de uma turma é reprovada, o problema é o professor”. “Não existe uma resposta errada, cada resposta tem o seu sentido para quem responde”. E outras baboseiras que tu, como todo mundo, já ouviste.
E nunca, jamais colabora para implantar um sistema que meça sistematicamente o desempenho cognitivo dos alunos. Afinal, das várias dimensões da Educação, o desenvolvimento cognitivo é uma das poucas fáceis de medir. Há quem pense que é caro medir desse jeito (nosso atual governo, por exemplo) – talvez achem barata a nossa cavalgante ignorância.
Portanto, foi com grande alívio, regozijo eu diria até, que acompanhamos o investimento na Educação em 2005. Mais especificamente, o investimento na criação de factóides sobre cotas raciais, reforma da universidade e outras futricas. É uma revolução, “uma volta de 360 graus” (casualmente, essa também é a definição que a Física dá para “revolução”).
Pegar o problema da Educação pelos chifres é muito perigoso ou muito tedioso. Façamos, então, o fundamental: garantir que a escola continue punindo quem pensa e mantendo o mais absoluto sigilo sobre quem sabe e quem não sabe, quem aprende e quem não aprende. O ano de 2005 foi tão profícuo na área da Educação, Fidelito, que vou ter que deixar outros temas para depois. Vai fazer o tema de casa, guri!

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Para que notícia?

Publicada n'O Taquaryense em 15 de janeiro de 2005.

Fidel, eu disse quando estreei nestas páginas que leio o Taquaryense quase sempre e os demais jornais quase nunca. É porque a função da imprensa, se algum dia foi informar, há muito deixou de ser. Hoje é muito mais entreter, mistificar e confundir. Tanto que criaram o termo “infotenimento”.
Não faltam exemplos de invenção jornalística. Lembra da última campanha presidencial, quando um grande jornal noticiou um comício do candidato José Serra que fora cancelado? E deram detalhes, “relataram”... Nesse caso houve má fé sem maldade, foi só a publicação de uma “notícia” redigida previamente.
E nas Olimpíadas de 1994? Eu estava lá e assisti à não-cobertura norte-americana da rede NBC, que comprou os direitos de não transmitir os jogos. Torci pelo Xuxa, o Fernando Scherer, na final dos 50 m nado livre. Pois em toda a transmissão só se pôde ver o russo Popov, que afinal ganhou, o nativo, que foi prata, e no final o enquadramento perfeito de duas bandeiras, subindo na cerimônia de premiação.
Nem o Xuxa, que ficou com o bronze, nem a bandeira brasileira, nem qualquer dos outros competidores apareceram. Isso é que é iludir com organização e alta tecnologia. Isso é que é primeiro mundo. A tecnologia avança, tudo se automatiza e fica claro quanto era tola aquela idéia de que “no futuro a vida será uma beleza e todo mundo viverá em férias”.
Comparando os dois casos, a diferença está no nível de competência na prestidigitação dos “fatos”. E isso é comum, aceito, “normal”. Se não fosse assim, o grande jornal que eu citei cairia em desgraça depois de publicar uma manchete “Governo Lula vai acabar com o Provão” com um texto que dizia exatamente o oposto. Bom, pelo menos eles acertaram no resultado, pois foi o que o governo acabou fazendo.
Essa tolerância com a mentira, ou até a sua exaltação como boa técnica, é o que me faz preferir as análises, crônicas e editoriais. Pelo menos eu sei que é opinião. As “notícias” são furadas e é só desgraça.
É como disse o físico César Lattes ao Jornal da Unicamp: “A leitura do jornal toda manhã é um ato de masoquismo. Acho que qualquer pessoa com um pouco de visão, ao ler essas notícias, deve ficar desesperançada. Eu, pelo menos, estou. Vocês não?”
A liberdade de imprensa foi criada pelos norte-americanos e sepultada pelos próprios. É a evolução. Foi-se entendendo como funciona e foram-se profissionalizando os jeitos de meter coisa na cabeça do povo, mostrar, ocultar.
É o jeito de lidar com a opinião pública, que já há muito tempo o escritor Oscar Wilde qualificou de “uma tentativa de organizar a ignorância das pessoas e elevá-la à dignidade da força física.” E tem gente especializada no negócio de fazer a opinião pública. Não é importante relatar ou analisar objetivamente os fatos, o importante é dar ibope, fazer marola.
Há uns anos, aqui onde eu moro, acompanhei de perto um evento de ciência, tecnologia e política que teve um ministro, o governador e o reitor da universidade, além de dirigentes de agências governamentais de 12 países. Claro que a imprensa recebeu um belo release. No dia da inauguração, o tema de um jornal matutino da TV local foi “Reiki para cachorros”.