sábado, 28 de fevereiro de 2009

E El Malo, que não vem?

Publicada n'O Taquaryense em 17 de setembro de 2005.

Fidel, ponho entre aspas porque foi ouvido por um amigo meu durante uma corrida de táxi: “Tem umas coisas sem sentido que não têm cabimento”. Todo mundo sabe que os motoristas de táxi entendem de economia, mas de vez em quando também criam pérolas da filosofia.

Uma das coisas sem sentido que não tem cabimento é esse costume brasileiro de punir o inocente e premiar o bandido. Há exemplos de sobra (eu mesmo fui premiado com 2 anos de corte salarial por detectar uma fraude e relatá-la à instância competente – o leitor me diga se não conhece quem viveu coisa parecida).

Agora mesmo, no lamaçal político brasileiro, pipocam exemplos. O caso que achei mais mimoso é o que envolve os protagonistas Chupim Maurício, alto funcionário dos Correios filmado ao embolsar 3 mil reais de propina, dizendo que “pode-se roubar de tudo nos Correios”, e quem planejou o videoclipe que acabou na TV.

Pois prenderam o ‘produtor cinematográfico’ pouco depois de a gatunagem explícita aparecer na TV. Já o Maurício... Vi a entrevista do chefe dele. Mais de 3 meses após o chupim barbado e bandeiroso roubar em horário nobre, ainda não encontrou motivos para demiti-lo.

A mensagem passada às criancinhas é claríssima: pode roubar, mas mostrar que um vigarista está roubando é considerado de péssimo tom e dá até cadeia. Mesmo que se filme e mostre o bandido com a mão na massa e ainda por cima contando vantagem. O vira-bosta continua solto e recebendo salário.

Bueno, a entrevista do tal chefe, sujeito mais lerdo para tirar conclusões do que um pé de samambaia, passou na TV. O chefe do chefe é o ministro das comunicações. Se o ministro não viu, algum assessor deve ter visto.

Pelo jeito, o ministro também não acha que há motivos para levar a mal o afano filmado de três mil réis praticado pelo larápio de óculos, gravata e barba mal feita. Continuemos. O chefe do chefe do chefe é o presidente da república. Aquele que tem mais moral do que qualquer um para falar de ética... na opinião dele próprio.

Pois o jurista Hélio Bicudo, petista dos antigos, contou à revista Veja que em 1997 o nosso agora presidente, então a figura máxima do partido, teria mandado abafar uma sindicância interna que ameaçava condenar um compadre. O único punido? O autor da denúncia.

Leio n’O Correio do Povo que a assessoria do Planalto planeja o roteiro do presidente no desfile de 7 de setembro com medo de vaia. Mas por quê? Se eu tivesse um bundão gordo, Fidelito, e o movesse em andanças festivas por aí, não teria medo. É mais fácil punir um cidadão cumpridor de seus deveres, que gasta seu tempo trabalhando, do que quem tem tempo e dinheiro para se defender de um ataque pífio.

Mais que pífio, cá para nós, o ataque é culpado. Velhas raposas simulam surpresa com a atual baixaria, como se os pudesse chocar. Como se o Severino tivesse começado a severinar agora. Como se o Roberto Jefferson só soubesse demais sobre o governo atual.

Os culpados, situacionistas em delírio persecutório e oposicionistas moralistas, ainda acham que enganam, mas são maus atores. Só lhes resta esperar que tudo se resolva como nos velhos tempos. Nervosos como gato em dia de faxina, esperam que apareça logo El Malo para ser culpado e remir a todos. E El Malo não vem...

Los Malos

Publicada n'O Taquaryense em 3 de setembro de 2005.

Fidel, o papo sobre tele-catch e seus bandidos e mocinhos que te contei na última carta tem inspiração numa aula. Aproveito para te contar como foi e para lembrar de um mestre muito diferente do doutor Tapir Hirsuto.

Era a década de 1980 e eu fazia Engenharia na gloriosa UFRGS. Mestre Elói Venâncio nos convidou a apresentar temas de Economia, o assunto da disciplina. Olha que incrível: houve vários voluntários, eu inclusive.

Apresentei uma resenha do livro A Trilateral, sobre o novo capitalismo. Havia uma passagem misteriosa para mim: falava do suborno do príncipe Bernardo da Holanda, em 1976, pela Lockheed. O livro só nomeava o subornado e a generosa empresa, sem outro detalhe qualquer.

Mestre Venâncio explicou que o suborno era para empurrar aviões da Lockheed para o governo da Holanda e que houve mais uma torcida do Corinthians de subornados pelo mundo. Também revelou como essas coisas se resolvem quando alguém é flagrado: elege-se “El Malo”.

Inspirado no tele-catch, El Malo faz o papel do bandido – o corrupto, desonesto, depósito dos ódios (invejas, na verdade) do populacho. Como no tele-catch, é tudo combinado. El Malo pode até ir preso, mas é muito, muito bem pago.

Claro que não é qualquer um que pode ser El Malo – choveriam candidatos. Senhores de posses e poder costumam eleger um cidadão enterrado no dejeto até o pescoço e detentor de segredos terríveis (para os tais senhores) para levar a culpa toda. Para fazer o papel, El Malo ganha uma compensação para lá de compensadora.

Mas, Fidelito, eu comecei a escrever esta história quando a CPI dos Correios estava no início. Queria observar a escolha d’El Malo, mas agora já me perdi. Reviravoltas demais! Ficou de um jeito que não sei dar palpite.

Nosso presidente? Ele não viu - faz o papel do juiz tolerante com o lutador trapaceiro. Roberto Jefferson? Bom candidato inicial, mas virou o jogo com brilho. Marcos Valério? Está parecendo a lagartixa que, no momento do perigo, abandona o próprio rabo como se objeto estranho fosse. Até reconhece que é seu, mas...

Mas gente demais buliu com essa cauda, fazendo o mineiro careca perder as credenciais, tornando-se inelegível para El Malo. Tem que ser um em quem a culpa grude (nisso ele está com tudo), mas que não arraste junto a horda de políticos que já fazem parte do cordão.

Quanto mais aumenta o bando dos infectados por evidências de corrupção, maior a urgência de se escolher logo El Malo e estancar a epidemia. A gravidade da coisa pode ser sentida no surto de um senador oposicionista que desatou a lançar impropérios ao presidente da República. Foi raiva ou inveja?

Tudo porque o financiamento de campanha do senador foi açodadamente posto sob suspeita por um deputado governista. O destempero do senador é inadequado para um homem inocente.

Felizmente, há sinais de que os homens de bem cederão ao apelo da razão. Especula-se um acordo partidário para retirar do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara o processo de cassação do deputado Roberto Jefferson. Quem sabe ainda salvam-se todos? Senão, quem resta?

No Senado: Eduardo Suplicy? Pedro Simon? Dá para encher a mão? E na Câmara? Denise Frossard e quem mais? Sobrariam só uns gatos pingados. Perdão! Sobrariam só uns não-gatos pingados.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

El bueno y el malo

Publicada n'O Taquaryense em 27 de agosto de 2005.

Caro Fidel, confesso que me causam certo asco essas cenas de "vale-tudo" que piscam na tela da TV quando eu zapeio pelos canais de esporte. Não gosto de ver gente se espancando até estropiar. É uma competição nada saudável. Não entendo como podem considerar esporte.
Até no boxe, que é esporte olímpico, o meu desgosto já se equipara ao interesse esportivo. A luta em si é bonita, mas já é hora de reconhecer que é mais estupidez do que esporte. O cérebro de um boxeur não resiste a tanta pancada. Vira mingau, está provado.
Porém, por algum motivo, parece que têm mercado garantido os programas de luta. Deve ser algo impresso na placa-mãe do cérebro masculino. Algumas mulheres também gostam, mas os barbados são mais fãs da pancadaria.
Quando eu era pouco mais do que um nenê, tinha fascínio pelo tele-catch, uma espécie de luta-livre em que marmanjões se soqueiam de um jeito bastante ridículo e ensaiado. Uma presepada. Quem é jovem não chegou a conhecer esse teatro da porrada.
Estou falando do início dos anos 1970. Não tínhamos permissão, eu e meus irmãos, para ver a luta. Porém, quando ficávamos com a avó, implorávamos até ela deixar. E, claro, tínhamos nossas preferências. Igualmente óbvio é que preferíamos os mocinhos, os do bem.
Eu lembrei que o Ted Boy Marino era um dos principais mocinhos, equivalente a um galã de novela. Mas tive de ir à web para refrescar a memória sobre o Fantomas e a Múmia, que eu pensava que eram bandidos, só que um sítio diz que eram de um grupo intermediário. Bandidos, mesmo, eram o Rasputin, o Verdugo e companhia.
Os golpes eram acrobáticos. O principal era a “tesoura voadora”, na qual o lutador se jogava com os pés em volta do pescoço do inimigo e o jogava na lona. A gente torcia, xingava, uivava. Às vezes havia briga de duplas ou até mais gente – uma apoteose.
Os mocinhos costumavam usar roupas claras. Tinham o cabelo bem aparado, eram simpáticos, atléticos, depilados no sovaco e jamais usavam golpes baixos como espremer limão no olho do oponente, morder ou espetar os dois dedos nos olhos do rival, o que era contra as regras.
Já os bandidos eram feios, sujos, peludos, mal-humorados, usavam roupas escuras e dirigiam ofensas à platéia. Começavam surrando o mocinho, usando golpes baixos com a conivência do juiz, que fingia não ver. A torcida ficava muito contrariada. Vez por outra alguém tentava subir no ringue para bater no juiz.
No fim, porém, o bem vencia. Ted Boy Marino se recuperava da surra e aplicava uma seqüência de tesouras voadoras no bandido. Daí, qualquer coisa valia e fazia a platéia delirar. Até pisão no braço e joelhada no estômago. Afinal, era o bem contra o mal! Mal sabia eu, nos meus tenros aninhos, que era tudo combinado antes.
Assim era, Fidelito. Fácil de separar o vício da virtude. O bem era limpo, simpático, cortês e jamais jogava sujo. O mal era imundo, mal-encarado, grosseiro e picareta por natureza.
Com inocência infantil, dava para acreditar nessa história. Na verdade, muito adulto também acreditava. Já quem não acreditava tendia a desaparecer. Desaparecer como os dinossauros, como os cantores do rádio, como os amigos do bairro (como dizem certos versos argentinos).

O professor Tapir ataca outra vez

Publicada n'O Taquaryense em 13 de agosto de 2005.

Fidel, andam dizendo por aí que o emérito professor doutor Tapir Hirsuto, que te apresentei aqui outro dia, agora está servindo a pátria em Brasília, no Congresso Nacional. A julgar pelo videozito que recebi hoje pelo e-mail, mestre Tapir agora empresta o seu brilhantismo literário à Câmara dos Deputados, no papel de redator de peças legais.
O videozito mostrava um repórter de não sei qual jornal anunciando o decreto legislativo de um referendo popular para outubro de 2005. A pergunta que será feita no referendo é (veja se não é obra de artista): "Você é contra a proibição da comercialização de armas e munição em todo o território nacional?"
Tivesse eu o mesmo talento do redator, estaria lá em Brasília. Como não tenho, arrisco aqui algumas sugestões alternativas para a pergunta do referendo: "A proibição da venda de armas e munições você não acha que não deveria ser liberada?" "Você é desfavorável à proibição da liberação de gente não andar desarmada?" "O que você acha de a gente entregar logo o país para alguns gringos que saibam ler e escrever?"
Desanimei, Fidelito. Cansei. Gastar o que se gasta todo mês com essa Câmara, com trocentenas de assessores, aspones, cunhados e parentes e não conseguir sequer enunciar uma pergunta decente? Mas o pior era o que vinha depois, no mesmo videozito de que te falei.
Em seguida à declamação do poema que é a pergunta do referendo, o repórter encontrou o presidente da casa legislativa, o deputado Severino Cavalcanti. Consta que a nomeação de doutor Tapir como redator teria sido indicação dele. O sagaz professor, por seu turno, seria um grande admirador do notável representante da vanguarda nacional do atraso.
Inquiriu do primeiro deputado o solícito repórter: Quais são os próximos projetos mais importantes a ser votados no plenário? Ao que respondeu Severino (está gravado, não é invenção minha): “Temos vários projetos aí, inclusive a reforma tributária, que deverá ser votada dentro de pouco tempo. Temos o... (longo silêncio) o... (longo silêncio seguido de “assopro” do assessor) ... a reforma política, temos a... (longa pausa)...”
E Severino desistiu de tentar lembrar de algum projeto importante. Das duas, uma: ou não há qualquer projeto importante para ser votado pela Câmara, ou o seu presidente tomou sonífero. É tanta lerdeza, Fidelito, que dá para desconfiar que tudo o que se tem feito na política nacional tem a inspiração do professor Tapir Hirsuto (noves fora a roubalheira, para a qual nosso herói não tem pendor nem talento).
Senão, vejamos: qual é a idéia do Congresso para que a bandidagem deixe de roubar a população? Desarmar a população, óbvio. Os indicadores educacionais são pré-medíocres. O que fazer? Deixar de medir o desempenho, claro, para a gente não passar tanta vergonha.
Os políticos roubam demais? Ora, é só criar mais impostos e financiar a campanha deles, desde que se continue mantendo em segredo a ficha corrida de cada um. A ficha corrida, o boletim escolar, o psicotécnico. Afinal, é preciso garantir o direito de todo ladrão, imbecil ou maluco de candidatar-se incógnito para nos (?) representar. Eu, hem? Não; não é nesses aí que eu voto para me representar.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

As aventuras do emérito professor doutor Tapir Hirsuto

Publicada n'O Taquaryense em 11 de junho de 2005.

Fidel, caí na tentação. Comecei a falar de Educação, dos abusos contra a língua, e isso é que nem balde de caranguejo: Puxa um causo e vem outro enroscado. Pois aí vai a história do professor Tapir Hirsuto, conforme prometi.
Tapirzinho começou cedo. Decorava bem a matéria, era um aluno exemplar e quase sempre tirava 10. O professor perguntou quanto vale a hipotenusa? Ele sabe: “O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos”.
“Muito bem, Tapirzinho!” Recebeu o elogio do professor e, não satisfeito, debochou do colega que queria saber o comprimento de uma ponte num vão de 15 metros com um desnível de 2 metros. Há gente besta neste mundo! Em vez de prestar atenção na matéria, perturbam com perguntas.
De tanto decorar a matéria para tirar 10 e decorar o boletim com notas excelentes, foi tomando gosto e resolveu ser professor. O professor Tapir Hirsuto começou a carreira como alfabetizador, nas primeiras séries.
Um dia, passou uma tarefa para casa: escrever o nome de 5 animais selvagens. Fascinado pelos animais africanos que viu numa revista, Marinho, de 6 anos, tascou: “Ocapi, feneco, facócero, tetraz e órix”. Tapir leu a resposta do Marinho em tom de deboche, em voz alta, para a classe. E sentenciou: “Isso não existe”.
Sem pestanejar (nem processar o professor pelo constrangimento – naqueles tempos nem se sonhava com essas coisas), Marinho escreveu outra lista: “Leão, girafa, elefante, tigre e macaco”. Não valia a pena discutir com um professor que é um Tapir Hirsuto.
E o Tapir fez faculdade, depois fez o mestrado e o doutorado. Professor doutor Tapir Hirsuto. É uma figura importante no meio universitário. Sempre que se reúne algum comitê de “notáveis”, o Tapir está no meio. Conselho Federal disso, “representante” (eleito por ninguém) daquilo, autoridade incontrastável.
Ele não é uma unanimidade, mas muitos o adoram por causa da sua curiosa linha de raciocínio. Por exemplo: um estudo da OCDE mostrou que os brasileiros de 15 anos, mesmo os que estudaram em escola particular, não entendem o que lêem. Tapir Hirsuto tem uma solução para isso: parar de fazer esses testes.
Ele também gosta da reserva de mercado profissional. Não importa que químicos ganhem prêmios Nobel de Medicina. Piaget não pode lecionar para a Pedagogia. Freud não pode dar aula na Psicologia. Peter Drucker não entra na faculdade de Administração. Se quiserem, têm que fazer um maravilhoso curso de graduação. Daí, terão a oportunidade de estudar nos livros que eles próprios escreveram.
Já um mané que nunca pensou nem escreveu nada pode dar aula no curso em que se graduou. E que se pague o mesmo salário para o que resiste às ofertas estrangeiras porque quer ficar no Brasil e para o que se esconde na universidade porque não teria espaço em outro lugar. Bela lógica, né Fidelito? Como diz o tango, “igual un burro que un gran profesor”. Pudera termos tantos escravos dublando professores.
Um famoso centroavante barbudo do Corinthians disse: "Mandai educar vosso filho por um escravo, e, em breve tempo, em vez de um escravo, tereis dois". Hein? Estão me cutucando, aqui, dizendo que não foi jogador do Corinthians. Parece que jogou na Grécia. Sei lá. Acho que eu faltei a essa aula.

A pequena notável

Publicada n'O Taquaryense em 28 de maio de 2005.

Caro Fidel, lamento insistir no assunto, mas é palpitante demais para desprezar e tentador demais para resistir. Outro dia te falei sobre um regulamento de campeonato de futebol no qual o artista redator espalhou vírgulas como quem dá milho às galinhas. Isso foi no Sobril.
Hoje quero falar do Brasil, mesmo. O caso ainda é a vírgula. Li uma frase do saudoso (pelo menos para quem gosta das letras) ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill. Eu não entendi e, se não fosse do Churchill (se é dele, é bom), nem tentaria duas vezes.
Dizia assim: “A imaginação nos consola daquilo que não podemos ser, o humor daquilo que somos.” Nonsense. O humor daquilo que somos é algo que não podemos ser e o consolo para isso é a imaginação? É o que diz a citação. Mas... Depois de muito pensar, concluí: o escrevinhador-copiador emasculou a citação churchilliana de uma vírgula e virgulou onde um ponto-e-vírgula faria melhor o serviço.
Devolva-se tudo ao seu lugar e emerge o talento do lorde: “A imaginação nos consola daquilo que não podemos ser; o humor, [nos consola] daquilo que somos”. Assim, com a vírgula marcando a elipse do verbo.
Por que essa inimizade com a língua? Por que essa violência, essa perseguição? Que mal te fez Camões, ó redator? Era só cutempeistar a notinha que veio da agência de notícias. Tinhas que pôr teu garrancho? Tinhas que inventar?
E por falar em vírgula, outro delinqüente: Paulo Coelho. Escritor brasileiro mais bem-sucedido (junto ao público, que é o que interessa), sujeito cativante, que aparenta, entre tantas qualidades, dispensar a arrogância e o orgulho em excesso. Porém, não sei por quê, despreza o esquálido sinal sintático.
Já li que ele não tira os erros de português de seus livros para não quebrar “o encanto”. Agora, leio que ele disse “Qual é o problema de uma vírgula entre sujeito e predicado?” Ora, nenhum, para quem não se importa que o leitor não entenda o que o escritor quis dizer.
E eu que fiz um esforço tremendo para conseguir ler um livro dele... Achei que fazia todo o sentido ler um livro do escritor brasileiro mais lido no mundo. Lá fui eu.
Em uma sentença no meio da página 100 da 148ª edição d’O Alquimista (ou da página 148 da 100ª edição, já não lembro...), há uma palavra que é advérbio para o que vem antes e é verbo para o que vem depois. Suportei e continuei lendo para concluir que ele é, mesmo, um mau redator e um excelente contador de histórias. Tanto sucesso não poderia ser à toa.
Mas por que considerar-se gênio e dispensar a ajuda profissional de quem poderia aprimorar o texto, melhorando o que é confuso e corrigindo as besteiras? Se ele quis entrar para a Academia Brasileira de Letras é porque desejava o reconhecimento, creio eu. Ou há outro motivo?
Qual seria – achincalhar-nos a todos que prezamos as belas letras? Se for dada a um leitor a permissão de protestar, eu diria: qual é o problema de admitir um erro e corrigi-lo?
Pronto, Fidelito. Comecei. Não era para ter puxado esse assunto. Agora é tarde. Na próxima, vou ser obrigado a te contar a história do professor doutor Tapir Hirsuto, um dos notáveis da educação brasileira. Porém, não tão notável quanto a vírgula, a pequena notável.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A serendipidade severina

Publicada n'O Taquaryense em 30 de abril de 2005.

Fidel, um dia desses descobri essa palavra que tem ano, mês e dia de nascimento: 28 de Janeiro de 1754. Foi quando o inglês Sir Horace Walpole a escreveu numa carta a seu amigo Horace Mann. Sacou a idéia do livro Os Três Príncipes de Serendip.
No livro, os 3 nobres passeiam pelo Sri Lanka, a ilha que já se chamou Ceilão, que já se chamou Serendip, e fazem descobertas de coisas que não procuravam descobrir, numa mistura de acidente e sagacidade. Daí em diante, a faculdade de fazer descobertas boas e inesperadas “por acidente” virou serendipidade.
Isso lembra algumas descobertas famosas. Por exemplo, quando o rei de Siracusa desconfiou que estava sendo roubado pelo ourives que fez sua coroa, pediu a Arquimedes que investigasse a composição. Já se conhecia a densidade do ouro, portanto qualquer mistura indevida seria flagrada pela densidade alterada da coroa.
Era preciso saber o peso da coroa – fácil – e o volume. Arquimedes tinha criado fórmulas para calcular volume, daí a convocação do rei. Então a cobra fumou – como medir o volume de algo com formas tão irregulares?
Diz a lenda que, ao entrar no banho e ver a banheira transbordar, Arquimedes sacou que o volume deslocado era igual ao volume imerso. O resto da história é conhecido: saiu gritando “Eureka! Eureka!”, peladão.
Também dizem que Newton, inglesamente tomando chá no jardim, viu cair uma maçã e pescou que a força que a atraíra deveria ser a mesma que mantém os planetas orbitando o sol. A penicilina também foi descoberta por acaso – Fleming percebeu que as bactérias que estudava morriam na presença de certo tipo de bolor. Foi estudar o bolor. Pimba! Penicilina.
Não é incomum descobrir algo por acaso, mas nem sempre são descobertas venturosas. Na nossa busca por democracia, por exemplo, queríamos Tancredo e encontramos Sarney. Já na eleição seguinte, topamos exatamente com o procurado: o candidato que forjou uma arruaça do adversário, travestindo seus capangas como contrários.
Mais tarde, pagou para que a ex-mulher do oponente aparecesse com uma denúncia grave e mentirosa. Tudo descoberto e divulgado pela grande imprensa antes da eleição, mas elegemos o personagem. Êta pontaria nossa, hem Fidelito?
E hoje? Na tentativa de aperfeiçoar o sistema de controle remoto da Câmara dos Deputados, que vige (virge!) desde o governo anterior, o que se encontrou foi a eleição de um potencial representante das trevas para o terceiro cargo mais importante da república.
Encontraram Severino. E não é que o cabra resolveu tirar a pilha do controle remoto? Por incrível que pareça, talvez esteja aí a descoberta de uma Câmara decente, autônoma. Dizia Picasso, o artista, que a inspiração existe, mas tem que te encontrar trabalhando. Aproveitar a oportunidade só depende de nós.
Eu ia contar que os 3 príncipes de Serendip, depois de muito passeio, chegam à Pérsia do rei Bahram. No caminho, conversam com um mercador que busca um camelo desaparecido. Eles não haviam visto camelo nenhum, mas o descrevem tão bem que o mercador desconfia, corre até o rei e os denuncia. Ao chegar, o rei lhes dá a oportunidade de escolher: morrer ou entregar o camelo. Mas aí já é fábula demais.

Bons tempos, aqueles

Publicada n'O Taquaryense em 21 de maio de 2005.

Caro Fidel, a luta entre o bem e o mal está de volta. Se algo separava a geração que é jovem agora da que foi jovem na época da ditadura, era essa aparente falta de uma fonte primordial de ruindade, que nos meus tempos de guri era farta: torturadores, censores, deputados estaduais fazendo empréstimos especialíssimos na Caixa Estadual...
Não estou dizendo que essas coisas acabaram. É notório que alguns perpetradores seguiram na carreira política e até hoje ocupam cargos importantes. Também há novos estrupícios. Porém, reconheçamos: temos democracia.
Quem diz que não temos, que não somos independentes, é aquele tipo que só reclama e não tem disposição ou paciência para progredir no passo que nos permite a nossa capacidade. Não há baioneta apontada para a nossa cabeça. Ponto. Daí para a frente é conosco.
Fechando parêntesis e voltando à juventude, todo mundo sabe que a pandorga sobe contra o vento. A gente precisa de uma certa dose de oposição para crescer. Ter tudo a favor pode parecer muito lindo, mas é um sonho ingênuo, próprio de quem teve tudo contra.
Senão, vejamos a onda atual na educação das crianças: os pais precisam impor limites. Vindos de um mundo estúpido que só os impunha, acharam que suprimi-los criaria liberdade, mas acabaram criando chatos que gritam e sapateiam – para ganhar chupeta ou um carro 0 km.
Eis que surge um fato novo para ajudar a construir o caráter, separar a atrocidade da virtude: o fundamentalismo cristão. Na matriz, a coisa começa pelo próprio presidente, que agora, inclusive, foi até eleito de verdade. Jorge Bucha é a fina flor do fundamentalismo.
No Brasil, ainda não chama tanto a atenção, mas não é de se desprezar: alinham-se contra a mania de dar bola para argumentos e evidências o presidente da Câmara dos Deputados, os governadores Garotinhos e uma legião de deputados do baixo clero.
No Rio, o governo resolveu catequizar com dinheiro público. Em vez de Darwin, Adão e Eva – mesmo que o assunto seja Biologia e não Cultura Religiosa. Cientistas e religiosos conviviam em relativa harmonia, mas com os fundamentalistas não tem conversa – eles têm a Verdade.
Não sei se aqui vai chegar a acontecer o que promete virar moda na América do Norte: alunos a processar professores que apresentarem a teoria da evolução, essa tese abusiva, só porque é baseada em fatos e argumentos. Mas nós não somos tão afeitos a brigar por idéias.
O fundamentalismo enfrentado pela geração mais antiga foi político. A universidade sempre foi um foco de resistência, mas houve gente cooptada, como um botânico soviético que negou a existência dos genes só para conquistar a desgraça acadêmica e as graças de Stalin.
Claro que a polaridade ideológica exacerbada gerava algumas ações pitorescas e fora de foco. Fazer greve de Coca-Cola para protestar contra o imperialismo ianque, por exemplo. Ou saciar o masoquismo enfrentando a polícia aos gritos de “me bate, me chuta!”.
Houve, também, o caso de um candidato a líder sindical que fez campanha com o lema “Chega de basta!”. Ganha a eleição para presidente do sindicato, mudou-se de mala e cuia para a sede, pois estava na penúria. Bons tempos, aqueles.

Guerra particular, estrago geral

Publicada n'O Taquaryense em 2 de abril de 2005.

Caro Fidel, tu lembras do bafafá envolvendo o cineasta João Moreira Salles, lá por 1997? Ele andava pelos morros do Rio com o traficante Marcinho VP (famoso desde que o cineasta Spike Lee pediu sua autorização para gravar um clipe do Michael Jackson no Morro Dona Marta).
VP foi morto na cadeia em 2003. Existe um homônimo por aí, a leitora não se confunda. Segundo o ex-chefe da polícia carioca Hélio Luz, o Marcinho do Dona Marta era só um figurante no palco do crime, um falastrão que foi confundido com o outro, esse sim, cruel e temido, e deixou pegar o apelido VP. Ou seja, o amigo de Salles seria falsificado. Vai saber...
João chegou a ser indiciado pela polícia civil carioca, acusado de favorecer o traficante, a quem pagava uma bolsa em dinheiro em troca de contar a história dos morros. Para João, era uma tentativa de afastar alguém do crime. Ingenuidade demais? Não sei. Só sei que não se pode culpá-lo pelo crime no Rio, como fez certo governadorzinho.
Naquele tempo, o Rio empreendia uma operação de guerra contra o tráfico, premiando os policiais que matavam mais bandidos. O lema era “atire primeiro, pergunte depois”. Não deu certo contra as drogas e aumentou o tráfico de armas, inclusive da polícia para os bandidos. João criticara essa política. O indiciamento seria uma vingança do governo.
A coisa toda fica mais interessante quando se assiste ao resultado das andanças de Salles e Kátia Lund pelas favelas cariocas: o documentário Notícias de uma Guerra Particular (1999). O filme consegue driblar a falta de destreza mental da maioria das discussões sobre violência. Não sataniza polícia nem bandido, mostra de forma bem didática por que a coisa é como é. O título vem da entrevista com um jovem policial: ele diz que há uma guerra particular entre polícia e tráfico, só que o povo morador fica no meio do tiroteio.
É chato e inútil ficar berrando “que barbaridade”, então só conto um trecho. O ex-delegado Hélio Luz faz uma análise bastante elucidativa. Ele descrê da história de que o tráfico substitui o estado, dizendo que não há competência para tanto. Com gente semi-analfabeta, o tráfico só consegue fazer algum assistencialismo (o que às vezes é mais do que faz o estado, penso eu).
Também faz perguntas: Para que produzir fuzil hoje? Para que uma fábrica de armas na Suíça ou nos EUA faz isso? Por que não fecha? O povo quer uma polícia que não seja corrupta? As primeiras respostas são fáceis, a última ele facilita: uma polícia honesta executaria mandado de busca e apreensão na zona sul do Rio, em vez de só invadir casa na favela.
O agora deputado estadual conta uma história pitoresca dos tempos de delegado (parecida demais com a que eu escutei de um delegado do interior). Começando a carreira numa cidade pequena, prendeu bandidos, ficou popular, convidado em eventos sociais, jurado em concurso de miss.
Um dia, um segurança de supermercado bateu num garoto que roubou. Hélio autuou os dois. O gerente virou fera: Como é que tu me fazes uma coisa dessas? Nós somos de bem! Mais adiante, um fazendeiro cometeu homicídio e Hélio prendeu. De figura simpática e prestigiada na cidade, virou persona non grata.

Parem esse moço!

Publicada n'O Taquaryense em 23 de abril de 2005.

Fidel, eu soube de um evento aí em Taquari. Parece que faz parte do III Encontro Nacional de História da Mídia, no campus da Feevale, em Novo Hamburgo, mas no último dia o pessoal se bandeia para a terra da laranja. A função é inaugurar o Museu-Vivo de Comunicação “O Taquaryense”, sob a organização da Univates, e rodar uma edição especial do jornal.
Não sei se tu te dás conta da dimensão do fato, neste ano que também é o do centenário de nascimento de Érico Veríssimo. Não sei se já viste na mesma mirada uma onça, um tapir e um lobo guará soltos no mato, ou um álbum completo de figurinhas dos Cracões da Copa de 70, ou um computador que ainda funcione com Windows 3.11. Mas, se tu tiveres a oportunidade, vai ver algo muito mais raro que todas essas coisas: a tirada de uma impressão d’O Taquaryense, talvez o único jornal do mundo que se mantém ativo com a mesma tecnologia do século XIX.
Ainda não posso dizer com certeza se é o único no mundo, mas estou perguntando aos estrangeiros e te conto quando tiver uma resposta convincente. O que eu descobri, Fidelito, é que O Taquaryense não é só o 2º jornal mais antigo do Rio Grande, como também é o 10º mais antigo do Brasil.
Pelo menos é o que disse A Tribuna do Norte (7º mais antigo) recentemente. Espia só: Diário de Pernambuco (1º-PE), Jornal do Commercio (2º-RJ), O Mossoroense (3º-RN), O Estado de São Paulo (4º-SP), A Província do Pará (5º-PA), O Fluminense (6º-RJ), Tribuna do Norte (7º-SP), Gazeta de Alegrete (8º-RS), Diário Popular (9º-SP) e O Taquaryense (10º-RS).
Só que nem os 9 mais velhos, nem qualquer outro que eu conheça, ainda fazem a montagem manual dos tipos. Por isso a edição especial, com tanta gente de fora para ver, bem como os projetos de alunos e professores da Univates são tão bem-vindos. Aliás, andei vendo na internet um filme de 1 min feito pelos alunos bolsistas do Projeto Cultural O Taquaryense: ”O perseguidor“, curta de horror. Já fico curioso para saber o que mais eles estão preparando.
O jornal vem sendo mantido em família desde a criação. Antes de Plínio Saraiva assumir funções gerenciais em 1947, o jornal foi dirigido, entre outros, por seu pai e fundador, Albertino, e por um irmão, Mario. De lá até 2004, seu Plínio fez o possível e o impossível para manter o jornal ativo, nem que para isso precisasse recorrer às próprias economias.
Não é à toa que há pouco mais de meio ano, quando seu Plínio deixou nossa companhia, falei do meu encontro com um mito do jornalismo e descrevi aqui nessa coluna o cuidado que ele dedicava a cada edição, a cada exemplar d’O Taquaryense. Comparei a presença dele à do “grande dragão da poesia”, Quintana – nativo da terra do primeiro jornal gaúcho e 8º do Brasil.
É mole, Fidelito? Seu Plínio dirigiu O Taquaryense por 57 anos, não fruiu as benesses do poder público, manteve uma linha editorial íntegra, com centenas de assinantes, de Taquari à Europa, conseguiu o apoio da comunidade para instalar o jornal em sede própria e construiu as condições para que o jornal continue ativo, mantendo suas características. Imagina se começam a aparecer outros jovens como ele. Não é possível! Assim esse país vai acabar indo para a frente. Parem esse moço!

Viagem a Cais Jovial

Publicada n'O Taquaryense em 19 de março de 2005.

Fidel, hoje vou te contar um pouco mais da minha viagem de férias ao Sobril, esse país fictício que se parece muito com o nosso, mas não é o nosso. Mais especificamente, ao estado do Sobril Meridional. Peguei o rumo sul pela Briói, a auto-estrada que acompanha o litoral. Deixei a Ilha Mágica e me fui a Cais Jovial, leal e valerosa capital do Sobril Meridional.
Cais Jovial, que costuma ser uma cidade grande, no alto verão se transforma numa cidade fantasma. É um calor de fritar ovo no asfalto. Pipoqueiro nem precisa de liquinho para estourar a pipoca, de tão quente que é. Por isso, quase todo mundo dá no pé em direção ao litoral. Muitos vêm para a Ilha Mágica pela mesma Briói, caminho inverso ao meu.
Chegando à leal e valerosa, fiquei muito impressionado com a decadência educacional, visível nas ruas da cidade. Não falo da ruína da polidez, que isso é um fenômeno mundial, mas do que é ensinado na escola – escrever, soletrar, ler de carreirinha, ler só com os olhos, fazer contas de cabeça, regra de três, noves fora, asserção e razão, essas coisas.
A capital, bem como o estado, costumava ser uma referência nacional de cultura e educação. Porém, em poucas décadas, algo aconteceu que fez despencar a qualidade do primário outrora bem-feito dos meridionais. As placas de trânsito são boas amostras da nova burrice.
Por exemplo, quem cruza as duas pistas da avenida que margeia o Arroio Esgoto, no sentido do bairro Cidade de Pedra, logo depois que passa o Ginásio da Milícia, depara-se com uma situação esdrúxula, patética. Se deixar a avenida, passando a circular pelas ruas do bairro, em cada esquina encontra uma placa “sentido obrigatório à esquerda”. [Fidel, muito depois de escrever estas mal tecladas eu vim a saber que não é um fenômeno localizado. As placas equívocas estão espalhadas pela capital e até pelas cidades do interior... Pobre Sobril Meridional.]
Ou seja, a única forma de obedecer à sinalização é ficar dando voltas na quadra até que acabe a gasolina. Seguir em frente no cruzamento é infração de trânsito. Nesse caso, o melhor a fazer é abandonar o carro, pois o caminhão-guincho não pode entrar lá, sob pena de também ficar preso, rodando em círculos.
Pobre Cais Jovial... Era tão orgulhosa de seu povo educado, mas hoje em dia escancara em praça pública a realidade cruel da ignorância. Fica claro, para quem circula pela Cidade de Pedra, que o que se pretendia comunicar era “proibido virar à direita”. Só que quem pôs as placas não sabe que isso não é o mesmo que “sentido obrigatório à esquerda”.
Depois, verifiquei que o problema não se restringe à Cidade de Pedra, mas está espalhado pela capital. Deve ser por isso que andava deserta... Agora, cada vez que um nativo de Cais Jovial me perguntar “Por onde andas?”, vou responder: “Por aí, dando umas voltas”.