segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A pequena notável

Publicada n'O Taquaryense em 28 de maio de 2005.

Caro Fidel, lamento insistir no assunto, mas é palpitante demais para desprezar e tentador demais para resistir. Outro dia te falei sobre um regulamento de campeonato de futebol no qual o artista redator espalhou vírgulas como quem dá milho às galinhas. Isso foi no Sobril.
Hoje quero falar do Brasil, mesmo. O caso ainda é a vírgula. Li uma frase do saudoso (pelo menos para quem gosta das letras) ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill. Eu não entendi e, se não fosse do Churchill (se é dele, é bom), nem tentaria duas vezes.
Dizia assim: “A imaginação nos consola daquilo que não podemos ser, o humor daquilo que somos.” Nonsense. O humor daquilo que somos é algo que não podemos ser e o consolo para isso é a imaginação? É o que diz a citação. Mas... Depois de muito pensar, concluí: o escrevinhador-copiador emasculou a citação churchilliana de uma vírgula e virgulou onde um ponto-e-vírgula faria melhor o serviço.
Devolva-se tudo ao seu lugar e emerge o talento do lorde: “A imaginação nos consola daquilo que não podemos ser; o humor, [nos consola] daquilo que somos”. Assim, com a vírgula marcando a elipse do verbo.
Por que essa inimizade com a língua? Por que essa violência, essa perseguição? Que mal te fez Camões, ó redator? Era só cutempeistar a notinha que veio da agência de notícias. Tinhas que pôr teu garrancho? Tinhas que inventar?
E por falar em vírgula, outro delinqüente: Paulo Coelho. Escritor brasileiro mais bem-sucedido (junto ao público, que é o que interessa), sujeito cativante, que aparenta, entre tantas qualidades, dispensar a arrogância e o orgulho em excesso. Porém, não sei por quê, despreza o esquálido sinal sintático.
Já li que ele não tira os erros de português de seus livros para não quebrar “o encanto”. Agora, leio que ele disse “Qual é o problema de uma vírgula entre sujeito e predicado?” Ora, nenhum, para quem não se importa que o leitor não entenda o que o escritor quis dizer.
E eu que fiz um esforço tremendo para conseguir ler um livro dele... Achei que fazia todo o sentido ler um livro do escritor brasileiro mais lido no mundo. Lá fui eu.
Em uma sentença no meio da página 100 da 148ª edição d’O Alquimista (ou da página 148 da 100ª edição, já não lembro...), há uma palavra que é advérbio para o que vem antes e é verbo para o que vem depois. Suportei e continuei lendo para concluir que ele é, mesmo, um mau redator e um excelente contador de histórias. Tanto sucesso não poderia ser à toa.
Mas por que considerar-se gênio e dispensar a ajuda profissional de quem poderia aprimorar o texto, melhorando o que é confuso e corrigindo as besteiras? Se ele quis entrar para a Academia Brasileira de Letras é porque desejava o reconhecimento, creio eu. Ou há outro motivo?
Qual seria – achincalhar-nos a todos que prezamos as belas letras? Se for dada a um leitor a permissão de protestar, eu diria: qual é o problema de admitir um erro e corrigi-lo?
Pronto, Fidelito. Comecei. Não era para ter puxado esse assunto. Agora é tarde. Na próxima, vou ser obrigado a te contar a história do professor doutor Tapir Hirsuto, um dos notáveis da educação brasileira. Porém, não tão notável quanto a vírgula, a pequena notável.

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