terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Não olha agora

Publicada n'O Taquaryense em 6 de novembro de 2004.

Querido Fidel, tu sabes da dificuldade que eu tenho às vezes para enxergar. Não é bem para enxergar, mas para encontrar alguma coisa. Há vezes em que procuro e não acho, embora esteja bem debaixo do nariz. Mas nada de errado com o meu olho, pelo contrário. Até o pequeno astigmatismo diminuiu, vai entender isso.
Já perdi uma panela de sopa em plena cozinha. Não consegui encontrar um mouse que estava ao lado do teclado apenas porque era preto (eu esperava aquela cor creme usual). Antes de tu pensares que é coisa de maluco (será?), deixa eu chamar o Steven Pinker para ajudar.
Ele tem um capítulo inteiro dedicado à visão no livro Como a mente funciona. Aliás, “a mente de quem?”, perguntou uma amiga ao saber o que eu estava lendo. Ele já se entrega no prefácio, dizendo que o livro não explica como a mente funciona. Tem cabimento escrever um livro para não explicar uma coisa?
Uma das não-explicações mais interessantes é que o olho não vê. Claro, tu dirás, a imagem é formada no cérebro. Não é isso, eu quero dizer que o estímulo visual recebido pelos olhos não é suficiente para formar a imagem que a gente “vê”. O afastamento de 6 ou 7 cm entre os olhos é uma tosca tentativa de ver em terceira dimensão. Acaba sendo uma visão em 2,5 dimensões, condizente com a nossa miséria.
O olho não vê (nem o cérebro, se a gente considerar apenas a informação visual que chega) porque há ambigüidade, é simplesmente impossível decifrar o campo visual com nossos dois olhinhos – alguns têm quatro, mas não faz muita diferença. Então como é que a gente enxerga? Tu acreditas se eu te disser que é inventando?
Pois é isso: a gente inventa a parte da visão que não entra pelos olhos. Mas é uma invenção malandra, um bom palpite que funciona na imensa maioria das situações. O segredo para enxergar é usar, para quem acredita nisso, o bom senso (eu prefiro chamar de senso comum). Só que é automático, não precisa nem pode pensar.
Já viste os desenhos do Escher, aquele artista holandês? Ele tem uma manha danada para desenhar de um jeito que tu nunca sabes o que está em pé, deitado, o que é quina e o que é cova. Ele faz de sacanagem, na natureza dificilmente acontecem essas confusões. Como eu não tenho o talento dele, preparei uma peça meio rústica para ti. Olha isso aí, desfocado, além do papel, fazendo com que os “oo” se sobreponham:
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Acho que é tarde para te pedir que não fiques bravo se não enxergares nada. Espero que te divirtas vendo um T gorducho, de Taquaryense, ali bem no meio do quadro, num plano mais distante que a página. Se não vires, eu é que vou achar graça, porque vais ficar invocado, pensando que é lorota.

Vitória de um teleoprimido

Publicada n'O Taquaryense em 30 de outubro de 2004.

Há duas formas (que eu saiba) de telemarketing, Fidel. No tipo pedinte, que comentei na última carta, eles te ligam porque querem teu dinheiro. Mas também há o tele-atendimento, quando a gente tenta ser ouvido por uma grande empresa em um desses telefones 800 (que a malandragem deles, maior do que a nossa, vai trocando para 300, para a gente pagar). São duas coisas bem diferentes.
Nos países onde há liberdade econômica mas também se respeita o cidadão, o telemarketing pode existir, porém há limitantes e socorros à mão. Nada que chegue a sessões públicas de tortura dos mentores desse tipo de pouca-vergonha (a única vingança realmente satisfatória), mas pelo menos não se deixa um cristão totalmente à mercê desses ladinos.
Nos Esteites existe a Lei de Proteção ao Consumidor contra a Fraude Telefônica. Cada violação dá multa de 10 mil dólares. Há também uma Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais que diz que toda pessoa tem direito a respeito por sua vida privada.
Para nós uma lei dessas seria um exagero, um luxo. Seja como for, isso tem muito mais a ver com o telemarketing pedinte. Não sei se contra o tele-atendimento há salvação, mesmo na Europa. Enfim, a diferença seria como cação e tubarão: cação é quando vem em filé ou postas, tubarão é quando nós é que somos a janta. Só que nem o tele-atendimento nem o pedinte lembram filé de cação. Não sei o que é pior.
O segredo da abordagem bem-sucedida ao tele-atendimento é a paz e o amor, que nem no caso do telemarketing pedinte. Só o amor constrói, nada de esquentar a cabeça. Vamos partir do princípio de que as pessoas são honestas e bem-intencionadas. Isso. Pensamento positivo.
"No momento, todos nossos atendentes estão ocupados", "não foi possível atender sua ligação". Bom, continua tentando e um dia tu vais ouvir o “tuuuu” que significa que conseguiste linha. Daí começa a ladainha: “pressione 1, 2 ou 3 para selecionar uma das opções que não interessam”, “usando o teclado alfanumérico, digite o nome de solteira da sua professora da primeira série” e por aí vai.
Se conseguires passar pela maratona, daí “você será atendido em breves instantes por um de nossos operadores” e uma musiquinha, interrompida a cada minuto e meio por mensagens que reafirmam como és importante para eles (só o amor constrói, não esquece). A orelha dói.
Daí tu perguntas, Fidelito: sim, e por que se submeter a essa porcaria? Bom, há pelo menos um caso que eu considero inevitável. Se viajas ao exterior, é impraticável ir sem um cartão de crédito. Pronto, arrumaste encrenca. Se quiseres cancelar o cartão, eles é que decidem se tu tens o direito de declinar do privilégio.
Sei de um cidadão que, após 6 meses de tentativas inúteis, conseguiu ser atendido pelo Elvis. Com a maior paz e amor, falou que queria cancelar o cartão o mais rápido possível. Elvis perguntou por quê. "Elvis, deves ser uma boa pessoa e não mereces o que me passa pela cabeça, mas eu gostaria mesmo é de pegar teu chefe e extrair as amídalas pelas entranhas" (detalhes técnicos impublicáveis). O cartão foi cancelado em menos de 5 minutos. Valeu, Elvis! Obrigado!

Como enrolar o telemarketing

Publicada n'O Taquaryense em 23 de outubro de 2004.

Fidel, quando ligarem às 8 da manhã de sábado, querendo falar com o “senhor Fidel” ou a “dona Teresa”, nem pensa em dispensar a chateação usando táticas antigas. “Não estou interessado, obrigado” ou imitar barulho de fax são recursos inúteis (se bem que conheço gente talentosa nessa imitação).
Os operadores são treinados; o negócio tem uma sofisticação que nós, pobres cidadãos, não estamos preparados para enfrentar. É por isso que eu venho, por estas mal traçadas, contar o que descobri ouvindo e xeretando histórias bem-sucedidas de combate telefônico.
Primeira regra: não ofender nem bater o telefone – o operador vai ligar imediatamente para a próxima vítima! Precisamos trabalhar em equipe. Além disso, quem chama é um ser humano que nem nós e precisa do emprego. Nosso papel é fazer o negócio pouco lucrativo, daí o investidor espertalhão (olha o teu fundo de aplicações aí) vai investir em coisa mais interessante e, quem sabe, mais decente.
Se tiveres tempo, puxa conversa. Pergunta se a pessoa estuda, comenta que tu soubeste de empresas de telemarketing que pagam salários baixos e fazem promessas de gordas comissões sobre vendas impossíveis. Que mandam o operador mentir e enrolar o cliente. Mas tem que fazer isso com jeito para segurar o personagem na linha, pois os telemarqueteiros acham o tempo precioso – o deles, não o teu.
Responde tudo o que perguntarem, desde que seja despiste. Obviamente não estou advogando a falsidade ideológica. Não é nada disso; é só uma questão de arrumar um bom pseudônimo e “endereço fantasia”. (Gostaste dessa? É o tipo de lorota que eles armam para a gente).
Enrolar é questão de talento e prática. Tenta essas: “Um segundinho só, o doutor Fidel está no outro telefone”. “Momento, tenho uma segunda chamada em espera”. “O senhor Mário saiu, quer deixar recado? Não, peraí, ele está chegando, já vou chamar” (Jacaré chegou? Depois me conta se o senhor Mário chegou para atender ao telefone). “Mas o meu nome não é Mário, é Amaro”. “Não é Amaro, é Mauro”. “Não é Mauro, é Mário”. Mas aí já é enticar com o pobre. Se é assim, tem táticas melhores...
"Esta ligação será cobrada à taxa de R$ 3,99 por minuto; permaneça na linha, sua ligação é muito importante para nós". "Por favor me dá teu número que eu ligo de volta" (mas cuidado, pode acabar em namoro se for pessoa do sexo interessante). “Por que não me dás o número? Não gostas de responder perguntas de um estranho por telefone?”
Bancar o surdo irrita mas dura pouco, melhor é contar em voz alta quantas vezes ela repete o teu nome, ou usar a mesma tática: “E como é que eu faço a doação, senhora Jennifer de Fátima?” Já que eles ficam repetindo, dá um nome longo e proparoxítono. Ou insiste para que pronunciem direito teu nome – “É Dessssmond, com ‘s’ espanhol, assoprado. De novo: Dessssmond”.
Depois de ouvir pacientemente o discurso ensaiado, abre o jogo: “Bem que gostaria de ganhar esse cartão de crédito, mas assim eu violo a condicional e vou preso de novo.” Agora, se quiseres mesmo colaborar com a causa, tasca um número de telefone de orelhão quebrado em tudo que é cupom de sorteio que te derem. Isso é que é ser cidadão consciente.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Nossa chance é agora

Publicada n'O Taquaryense em 16 de outubro de 2004.

Fidel, tu sabias desta declaração? “Nossos inimigos são inovadores e cheios de recursos e nós também. Eles nunca param de pensar em novas maneiras de prejudicar nosso país e nosso povo, e nós também não”. Foi ele, George Walker Bush, presidente dos EUA e candidato à reeleição, falando diante de autoridades do Pentágono.
Por que é que o presidente norte-americano resolveu dedicar-se a prejudicar o próprio país eu não sei, mas vamos reconhecer: eis a grande oportunidade para o Brasil e outras nações pobres melhorarem de vida. Não que nós tenhamos evoluído muito em mentalidade e valores, os norte-americanos é que cansaram de progredir e resolveram descer a ladeira.
Sabe aquela crença popular de que vida de rico é um saco e que pobre é que se diverte? Parece que os gringos se convenceram disso. A gente não tem que entender. Se eles querem fazer dívidas e inimigos, é problema deles.
O fundamentalismo, gasolina do terrorismo, tem funcionado na terra do tio Sam. No caso, é fundamentalismo protestante, mas não faz muita diferença. Quem tem vocação consegue até ser moderado radical, fanático do meio-termo.
Nós aqui conhecemos o estilo. Lembra da Beija-Flor, Fidel? Houve um carnaval em que teve que cobrir seu carro alegórico porque era uma imagem do Cristo Redentor e alguém já tinha registrado a marca no INPI. Business is business. Os direitos comerciais dos donos do crucifixo têm de ser respeitados.
Ainda bem que o castigo não é mais virar churrasco, como em séculos passados. Que bom para o Joãozinho Trinta viver num país com liberdade religiosa e de expressão, né? Eu mesmo, com esta singela carta não-psicografada nem ditada por divindade, em outras épocas correria o risco de virar torresmo. Logo eu? No máximo daria um torresmo light.
O segredo de marketing dos fundamentalistas é insuperável: requisitar intimidade com o Onipotente. É dizer que quem está falando é o Ser supremo, não o mané que conta a lorota. Daí ninguém pode chamar de lorota, pois foi Ele que falou e quem está contra merece aumentar a renda per capita pela parte do denominador (uma capita a menos).
Voltando aos talibãs ianques, o mulá-presidente não vai permitir a clonagem de células-tronco, que tanto promete para o avanço da medicina. É a chance dos países pobres mas bons de pesquisa como o nosso diminuírem o atraso.
Os britânicos já aprovaram os estudos (mas acho que não servem como exemplo de país atrasado). Por aqui, a Dra. Mayana Zatz, que coordena o Centro de Estudos do Genoma Humano, já se esfalfou explicando aos nossos nobres representantes por que devemos pesquisar. Mas falou sem mandato divino.
Então, Fidelito, em vez de dizer que o presidente-caubói é um Ronald Golias do mal, aprecia o raro momento em que a grande potência do planeta nos dá essa oportunidade. Daqui a pouco vai disputar outra eleição e dessa vez tem chance até de ganhar. Quem sabe ele inventa outros motivos para engatar uma marcha-a-ré acelerada? E se, em cima disso, ainda resolvermos avançar por conta própria, hem? Ninguém segura esse Brasil.

Já ganhou

Publicada n'O Taquaryense em 2 de outubro de 2004.

Caro Fidel, tem sido interessante este ano de 2004 cheio de competições. As que acompanhei melhor foram a Olimpíada e a eleição municipal. Digo interessante porque a gente observa, aprende e se diverte com as estratégias dos jogadores. Tem de tudo – as sensatas, as curiosas, o tiro no pé, o golpe de mestre.
Eu me interesso mais pelo jeito de cada um jogar do que pelo resultado. Acompanho com fascínio a concorrência que os candidatos vêm fazendo aos cachorros: é só o totó regar o poste para marcar seu território, vem um candidato e pendura uma placa. Totó faz mais um xixi, candidato bota mais uma placa. Haja urina! Haja tinta!
Tenho visto candidatos dirigirem-se ao eleitor como a um matuto na saída da estação rodoviária. Será que tanta gente ainda compra bilhete premiado, Fidel? Há os moderados, mas os que me divertem têm jeito de ator de novela mexicana, exageram no dramalhão, acreditam que convencem... Deve ser difícil ser ator de verdade com tanta concorrência. Aliás, cachorros e atores estão passando por uma fase terrível.
Há os bons de voto e os ruins de voto. Não me pergunta como isso funciona porque eu não entendo. Numa famosa eleição presidencial ganha pelo Dick Vigarista (para quem lembra da Corrida Maluca), eu duvidei quando todo mundo dizia que o resultado seria aquele. Para mim, fazer todas as trapaças que ele fez e ser descoberto ainda antes da eleição, como ele foi, era garantia de óbito político. Não foi.
Na política, no esporte e em outras coisas é muito importante ganhar. Mas eu entenderia melhor a afoiteza de tentar ganhar na marra se viesse de garotos inexperientes. Às vezes não tem jeito, Fidelito. Tem que reconhecer, enrolar a bandeira e tentar outra vez. Daí na próxima, quem sabe, a sorte sorri.
Preferências políticas à parte, que cada um tem a sua, olha o nosso presidente: perseverou e ganhou depois de perder por três vezes. E olha que ele perdeu até para o... Peraí, vou mudar de assunto, esse é muito triste.
Quanto aos atletas, acho inspirador assistir à Paraolimpíada. É bom ver gente com limitação física que não se resigna, continua vivendo e ralando. Também inspirador foi ver a Daiane lidar com a derrota. Deu para sentir que a guria tem virtudes muito maiores do que ser campeã do mundo e saber voar.
Uma vez falei aqui dos garotos de salto alto, os do futebol, cuja estratégia foi não ir a Atenas. Tática meio estapafúrdia, né Fidel? Mas o caso das garotas do futebol, esse sim dá gosto! Já se sabia que eram boas de bola e que não há apoio para o futebol feminino no Brasil, por incrível que pareça. Quer dizer, mais ou menos, porque contrataram como técnico o René Simões, aquele mesmo iluminado que levou a Jamaica à Copa do Mundo.
E não é só isso. Disse uma delas: "Temos tudo o que não tivemos em outras épocas: de psicóloga a podólogo, carinho, respeito e profissionalismo". Quem faz tudo bem feito já ganhou. Primeiro lugar, daí, é só uma questão de concentração, competência e sorte. E se não deu dessa vez, numa próxima vai dar.

sábado, 13 de dezembro de 2008

De novo o vereador

Publicada n'O Taquaryense em 25 de setembro de 2004.

Fidel, quando te falei sobre meus critérios para escolher o candidato a vereador, esqueci uma coisa importantíssima! Para escolher o candidato, tem que analisar as carreatas que ele e seus correligionários promovem. É lógico.
Porque, pelo que ouvi falar, as atribuições de um vereador são propor e votar leis e outras iniciativas municipais, fiscalizar a prefeitura, conceder audiências públicas e também, claro, comparecer religiosamente a todas as sessões da câmara. Logo (acompanha meu raciocínio), quem não faz belas carreatas não tem competência para ser vereador.
Puxa a calculadora aí, Fidelito. São 5.562 municípios no Brasil. O número de vereadores varia conforme a população do município. Nove nos menorzinhos, um pouco mais nos maiores, até 55, que é o tamanho da câmara de São Paulo, a maior do país. Para não encompridar a história, são 51.818 vagas de vereador, o que dá uma média de 9,3 vereadores por cidade.
Aaaaaaah! Agora entendi aquele bochincho todo no Congresso Nacional por causa do número de vereadores. Era para ser no mínimo 7, daí 9, 11 (número ímpar para não dar empate nas votações) e assim por diante. Brigaram muito e conseguiram que ficasse pelo menos 9, depois 10, 11, 12 e lá vai bola. Uia! O número mínimo é 9 e a média deu só um pouco mais que 9. Se fosse 7, então, a média daria 7 e pouco.
Mas claro! Nossos inteligentes e patrióticos deputados e senadores querem ajudar o presidente Lula a criar os 10 milhões de empregos que prometeu. Aumentar o mínimo para 9 criou uns 10 ou 11 mil empregos de vereador, pelas minhas contas, mais esposas, filhos, sobrinhos, pais, cunhados e amigos que alguns costumam chamar para uma boquinha no serviço público. Se todo vereador empregar duzentos, acaba o desemprego!
Mas não te desconcentra das contas, Fidel. São 346.680 candidatos, só contando aqueles que têm a candidatura deferida ou sub judice (ou seja, fora os que, após um longo processo, acabaram condenados por crime em última instância, sem jeito de se safar). Isso dá uma média nacional de 6,7 candidatos por vaga.
Não guarda a calculadora. Vamos chutar que, em média, cada candidato faz só umas 10 carreatas, cada uma com uns 10 carros. Digamos que se anda 10 quilômetros em cada uma e digamos que isso dá em média um litro de gasolina. Deixa eu ver... escorrega um zero...
Quase 35 milhões de litros de gasolina! Mais a papelada que vai entupir os bueiros, latinhas de cerveja pelo chão, muitos casos de pugilato com escoriações e oito tumultos causados por exibição de partes íntimas (houve muitos mais, que não causaram tumulto, só diversão para a platéia). Tudo sob uma cativante e estridente musiquinha tocada pelo carro de som (de preferência, paródia de axé da Ivete Sangalo enaltecendo as qualidades do candidato).
Fazer carreata é um exercício fundamental para nossos futuros nobres edis. É ali que eles mostram como respeitam nossa inteligência e compreendem o delicado equilíbrio ecológico do planeta, bem como o que é ser vereador. Então, querido candidato, não esquece: quando passar na frente da minha casa, buzina que eu abano.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Como escolher o vereador

Publicada n'O Taquaryense em 18 de setembro de 2004.

Caro Fidel, não falo sobre o processo eleitoral taquariense porque vivo em plagas distantes, mas aqui na minha cidade ocorrem fenômenos que eu acho que são universais. Para ajudar os candidatos a vereador, vou contar meus critérios para escolher o candidato nesse xópim center bizarro que é o Horário Eleitoral.
Falando em xópim, aliás, hoje em dia se “vende” um candidato que nem se vende margarina ou cerveja. Só que com muito mais competência, pois te pergunto, Fidelito, se já viste algum saco de bolacha que não diz o peso, ou que nem diz se é bolacha. Pois é assim que se vendem os candidatos: cara, número e musiquinha. Não precisa mais nada – êta marquetingue!
Lembra da propaganda “gratuita” dos tempos da ditadura? (Claro que não; só quem é velho que nem eu). "Fulano de Tal. Advogado (ou engraxate, médico, funcionário público...). Líder estudantil. Foi preso..." (para quem era Oposição, era uma honra ter sido preso - mas nem sempre se esclarecia o motivo e muito matuto concluía que era crime comum e não desobediência aos nossos redentores militares).
Se é letrado ou analfa, se já trabalhou na vida e em quê, quantos metros tem sua ficha corrida (é, isso mesmo: na polícia!), por onde andou... nada disso interessa. Então, sem mais delongas, explico como eu escolho.
Primeira coisa: "Sou seu amigo"; "Amigo a gente não esquece". Beleza, quero me arrumar! Raciocina comigo, Fidelito: se na minha cidade há, digamos, dez mil eleitores e o ganhador teve cinco mil votos, eu quero estar entre os que vão ganhar boquinhas e caminhões de aterro. Deixa os outros cinco mil chupando dedo!
Outra coisa decisiva: "Sou daqui; nasci e cresci nesta terra". Porque, se há coisa nojenta neste mundo, são esses estrangeiros que vêm para cá pagar impostos e vencer com sua competência, em vez de fazer como nossos antepassados, que chegaram matando índios e, por isso, são os únicos que têm o direito de existir em nossa abençoada cidade.
"Vou acabar com esses pardais e caetanos" é certeza de voto. Eu ali, calmamente furando um sinal ou voando baixo e vem um aparelhinho besta guardar a prova do feito, como se eu fosse marginal... Basta de abuso! Eu não sou um qualquer. Conheço o deputado João Boquinha e ele sempre conseguiu “tirar” minhas multas.
"Sou do partido do presidente (ou do governador, ou do ministro, ou do deputado João Boquinha) e por isso sou o único que vai conseguir trazer as verbas necessárias para ...” (pensa na vergonha municipal não resolvida por falta de verba ou “vontade política”). Tens o meu voto. Quero ser amigo de gente importante amiga de gente importante.
Por fim, a musiquinha. Não é detalhe menor. Tem que ter musiquinha parodiando algum sucesso da Ivete Sangalo. Mas, atenção: não faz a besteira de pôr uma mensagem esclarecendo que os direitos autorais foram pagos. Assim o efeito positivo vira negativo. Não vivem dizendo que "político é tudo ladrão" e que depois de eleitos eles só se preocupam em encher os bolsos? Só que tem uns que decepcionam e vão ser honestos. Não se pode confiar nesses políticos! Por isso é que eu voto em quem tem musiquinha da Ivete Sangalo. Se não for ladrão, pirata eu já sei que é.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Na presença de um mito

Publicada n'O Taquaryense em 21 de agosto de 2004.

Fidel, mal terminei a carta que falava de jovens empreendedores, recebi a notícia da passagem de um grande empreendedor – jovem de espírito aos 101 anos. Há pouco tempo indaguei de algumas pessoas a sua trajetória. Só depois da perda lembrei de fazer uma busca na web e vi que há uma quantidade de material sobre Plínio Saraiva.
Jornais e outros veículos registram sua história de jornaleiro, quando começou a seguir os passos do pai, até editor deste semanário, que comandou desde 1947. O centenário de nascimento tem a cobertura mais copiosa, mas não há como separar a história dele da do jornal que publica estas mal traçadas. É o segundo jornal mais antigo do Rio Grande em circulação (desde 1887), cinco anos mais jovem do que a Gazeta do Alegrete e três anos mais idoso do que o Diário Popular pelotense.
O Correio Braziliense arrisca que O Taquaryense deve ser o único brasileiro a ainda usar a caixa francesa para toda a sua composição. Nessa caixa francesa, eu explico, ficam os tipos móveis, montados um a um (no nosso caso, numa impressora Marinoni comprada usada do Correio do Povo em 1910). Maiúsculas na caixa de cima, minúsculas na caixa de baixo. É daí que vêm as expressões “caixa alta” e “caixa baixa” usadas até hoje.
Pois eu tive o privilégio de conviver e observá-lo no ambiente de trabalho, numa sexta-feira em que vi publicada uma das primeiras edições destas cartas, caro Fidel. Quando cheguei, fui gentilmente recebido pela equipe, que me mostrou a casa. Pude espiar o acervo, que vem sendo lembrado em pérolas centenárias reproduzidas agora, tanto tempo depois. Também acompanhei a tiragem, fino espetáculo.
Ele chegou e cumprimentou, muito educado e elegante como era seu costume. Cioso do destino dos 500 exemplares, dedicou especial atenção ao feixe já endereçado, amarrado com barbante, que jazia sobre a mesa. Eram as cópias a serem espalhadas pelo Brasil e pelo mundo, levando aos taquarienses nativos ou adotivos as reflexões (no caso, da Lagoa Armênia) [1], os fatos (sem fotos), os pensamentos, as inquietações e a luta dos conterrâneos contada por outros conterrâneos dentre os quais eu, de furão, despudorada e orgulhosamente me meti. Desatou o laço, desfez o feixe e conferiu um a um. Só então, seguro de que os exilados teriam as preciosas quatro páginas de saudade, permitiu-se relaxar e bater papo.
Eu viera prevenido com uma máquina fotográfica a tiracolo, mas um pudor estranho me atacou. Lembrei da época de faculdade, nos 1980, quando entre amigos nos chamávamos e discretamente apontávamos a presença dele – o grande dragão da poesia Mário Quintana – calmamente deambulando pela cena porto-alegrense. Não queríamos tietar descaradamente, como fãs de músicos que gritam e se escabelam na proximidade do ídolo.
Pois é, o tal pudor impediu minha iniciativa de convidá-lo para um retrato lado a lado, com a portada d’O Taquaryense como cenário. No entanto, tenho certeza de que a película que foi sacada está mais de acordo com o gosto dele: toda a equipe do semanário, com a velha Marinoni ao fundo. É esquisita a sensação de presenciar um momento glorioso e de estar na presença de um mito do jornalismo.
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[1] Reflexões da Lagoa e Fatos sem Fotos são algumas das seções permanentes do jornal; discorrem sobre o que interessa aos taquarienses (ao mundo, eu diria).

sábado, 6 de dezembro de 2008

Empreendedores

Publicada n'O Taquaryense em 11 de setembro de 2004.

É um admirável mundo novo, Fidel. Olha o que fizeram quatro garotos de Cincinnati, de 18 e 19 anos: ligaram seus computadores em rede com antenas de satélite, uns pratões de 3 m de diâmetro e andaram pela vizinhança captando conexões internet sem fio desprotegidas. Bateram nas portas das casas e se ofereceram para proteger as informações. Ante o olhar aterrorizado dos visitados, desconfiaram que o negócio não ia dar certo. Pelo contrário, podia até pintar polícia na parada.
Só que um deles tropeçou no sítio (sim, Fidelito, eu não sou xenófobo, dou meu OK para software e hacker, mas delivery e site não dá) da DefCon, uma conferência de hackers em Los Angeles. Faltavam só 19 dias.
Havia um prêmio para a conexão sem fio mais distante. O pai de um deles, engenheiro, espantou-se com a qualidade dos resultados. Outro pai levou-os pessoalmente de Cincinnati a Los Angeles, arrastando um trailer com a parafernália por quase 3500 km.
Foram lá e ligaram 2 computadores distantes 55 milhas (88 km), o que é um recorde mundial para pontos no solo. Mais assombroso, desligaram a amplificação de sinal e a conexão continuou ativa. Ganharam livros, medalhas e um passe vitalício para a DefCon, além da veneração uivante da grande tribo dos hackers.
Quem me conta a história é um dos meus gurus tecnológicos, da mesma idade dos quatro premiados. Achei inspirador, heróico. Mostra a atitude típica dos empreendedores – curiosos, movidos pela vontade de fazer, focados em soluções, não em problemas.
Pipocam empreendedores por aí. É gente que gera negócios, mas também já existe espaço para empreendimentos cujo produto não tem que dar lucro. Um exemplo brasileiro de fama mundial é o Rodrigo Baggio, que criou o Comitê para a Democratização da Informática. Começou no Rio, levando o computador às favelas. Foi reconhecido pelo mundo, recebeu até título de doutor honoris causa de uma universidade norte-americana. Ah, o leitor não ouviu falar de Rodrigo Baggio? Pois é, isso não aparece muito, parece que não é notícia.
Dá para empreender em praticamente qualquer coisa. Conheci uma professora de Matemática porto-alegrense, num congresso no estrangeiro, que criou um método para ensinar fatoração, aquela técnica de simplificar expressões que tanta gente vê como um bicho-de-sete-cabeças. Ela deduz as fórmulas com tijolinhos. Com retângulos e paralelepípedos com arestas de tamanhos simbólicos como a, b, x e y, ela mostra por que (a+b)*(a-b)=a2-b2 e outras sacações que muita gente decora na escola sem entender bem o espírito da coisa.
Há um empreendedor em cada um de nós, Fidel. Até naquele vizinho que esganiça além da capacidade auditiva humana o som do carrão que ganhou do papai (já que sabe desenhar o próprio nome e agora se prepara para ser doutor). Ao contrário do que pensas, ele não é um cretino arrogante e mal-educado. É só um potencial empreendedor brincando com as suas engenhocas. Um dia desses o espírito curioso desabrocha e ele vai revelar o gênio interior. Tu vais ver. Espera só.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Pela emancipação masculina

Publicada n'O Taquaryense em 14 de agosto de 2004.

Caro Fidel, venho rogar teu apoio num assunto que muito interessa a nós, representantes de um sexo em extinção. Vimos acompanhando ao longo dos anos a trajetória feminina rumo à emancipação, mas nós barbados não acompanhamos o progresso, não evoluímos de acordo.
Longe de mim ser contra a alforria mulheril, logo eu que já opinei sobre os matrimônios de antanho, ritos de transferência patrimonial. Também não quero minar tua autoconfiança, justo agora que engataste um namoro firme. Mas o fato é que estamos perdendo a parada.
Enquanto as mulheres jogaram o trabalho de casa para os eletrodomésticos e ganharam a rua, tudo isso sem perder regalias como a aposentadoria precoce, a licença-maternidade e a atenuação dos crimes hediondos cometidos durante a TPM, nós perdemos o poder e ganhamos o quê? O controle remoto da TV?
Falta-nos liderança, mas não sou candidato nem conheço alguém habilitado e disposto. Urge, porém, recuperar o orgulho macho e o exercício das atitudes que melhor nos definem: coçar as partes baixas em público, fazer um trilho com a roupa suja a caminho do chuveiro, falar “Sair com esta minissaia, uma ova!” e outras transcendências características do másculo.
Vamos reaver nossa glória! Quero sugerir um símbolo para a nova era: a pochete, esse pretexto masculino para fazer o que toda mulher sempre teve direito: carregar um número indizível de bugigangas. Até índio grosso respeita – jamais percebi qualquer piadinha, insinuação ou sequer um arquear de sobrancelha relacionado ao porte da pequena bolsa presa à cintura (que lembra guaiaca, talvez por isso).
A pochete é uma redenção. Para provar, faço um inventário da quinquilharia que carrego: chaves do meu carro, do da patroa e outras dezenas (a metade eu não sei de onde), lapiseira-miniatura (bom quebra-galho), moedas, protetor labial (emancipar-se é não ter medo da frescura!), alicate de unha, um canivetinho cuja aparição providencial já me rendeu algum prestígio, esferográficas (azul, vermelha, preta), 7 talões de cheque (4 vazios, um de um banco do qual não sou cliente há 19 meses), receita de remédio para cachorro (só lembro que não precisou, mas não sei para quê), receita médica (preciso providenciar), guardanapos do restaurante onde almoço com importantes anotações de negócios (feitas há quatro meses), uma ficha do metrô de São Paulo e outra do Trensurb de Porto Alegre que duvido que funcionem, papéis e mais papéis com e-mails anotados (para os quais jamais enviarei mensagem) e a carteira – com documentos, uns pilas, cartões de crédito (já que é impossível cancelá-los), meu último cartão de visita, cartões de outros tipos, fotos 3x4 e mais papéis com e-mails, entre outras tralhas.
A pochete é uma quebra de paradigma. Sua ancestral, a capanga ou perde-tudo, foi inspirada na bolsa feminina, com alça. A pochete não. Fica ali, encimando o saco e não nos requer lembrar nem ocupar as mãos. Sua elevação à categoria de símbolo da emancipação masculina é minha modesta contribuição. Além disso, hoje em dia usar pochete é uma coisa normal. Baguais do mundo, uni-vos!

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Ouviram e não entenderam do Ipiranga

Publicada n'O Taquaryense em 31 de julho de 2004.

Fidel, vou facilitar a tua vida para que não passes mais de 30 anos procurando o sujeito da primeira oração do hino nacional, que nem eu: são as margens plácidas. São as margens plácidas do Ipiranga que ouviram o brado retumbante de um povo heróico.
E desde quando margem tem ouvido? E que povo heróico tonitruante era esse à beira do riacho? Não tenho idéia. Dizem historiadores alternativos que a única coisa que as margens plácidas do Ipiranga podem ter ouvido foi o grunhir arfante do proclamador a aliviar-se de uma indisposição intestinal das brabas. Despeito ou verdade, não sei – o fato é que os historiadores chapa branca tanto pintaram de bravo e sublime o covarde e tacanho que ninguém mais acredita na pose dos nossos próceres.
Não é à toa que aparecem as paródias do tipo “japonês tem quatro filhos”. Pelo menos aí o nosso precário entendimento consegue achar sentido e graça. Para que um hino pomposo e rebuscado? Ainda que nossos hinos cantem coisas bonitas em vez de estripar e decapitar gente, poucos têm a beleza e a concisão do Farroupilha, que canta o precursor da liberdade e a virtude de um povo. Não é só por nativismo que aqui se canta o hino, é porque faz sentido!
Voltando às margens do Ipiranga, eu achava óbvio que o escrevinhador-copiador esquecera a crase (que existiria assim como no começo desta frase), tornando o sujeito indefinido. Não que seja tão raro o domínio da crase, mas eu assumo que o último revisor é sempre um analfa de pai e mãe. Senão, como explicar as placas de trânsito do tipo “à 100 MTS” e “motorista fique alerto”?
Há gente letrada no departamento de trânsito, tenho certeza, mas não é gente que pinta placa. Bem nos alertou Quintana de que “um engano em bronze é um engano eterno”. Em tinta verde e branca não é eterno, mas nos atormenta por uns pares de anos.
Confiante pelo achado do sujeito, fiz uma brincadeira: pus a primeira oração na ordem direta e joguei num tradutor automático (www.systransoft.com) para o inglês. Surpresa, Fidelito! Não é que traduziu direitinho? E ainda transpus de volta ao português – falharam algumas palavras mas a frase ainda é razoável: “As bordas placid do Ipiranga tinham ouvido o shout trovejando de um pessoa heroic”. Pelo jeito faltam coisas no dicionário inglês-português.
Um professor me contou que recebeu um aluno argentino na sua turma de engenheirandos e – incrível! – o garoto é capaz de formar frases, ainda por cima fazendo concordar artigos, verbos e complementos. Outra professora tem uma dupla de caboverdianos com semelhantes e espantosas habilidades. Ainda outro argumentou que isso ocorre por que os estrangeiros, quando vêm para cá, aprendem a gramática sem vícios e portanto escrevem melhor que os brasileiros. Tive vergonha de lembrá-lo que a língua-mãe dos caboverdianos é... português! Ai, ai, nem os mestres se salvam.
Pensando bem, acho que vou pagar uma revisão caprichada para estas mal traçadas. Não me admiraria se descobrisse que, na tentativa de imitar o poeta que roça na língua de Luís de Camões, estivesse a dar-lhe um belo de um pontapé nas partes pudendas. Ninguém se salva!

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Nem pública nem gratuita

Publicada n'O Taquaryense em 24 de julho de 2004.

Fidel, dizem que os mais velhos são sábios e não cometem os erros que os jovens cometem. Eu não sei, não. Ou sou tolo demais, ou velho de menos, mas encaneço e alopeço sem refutar a teoria construída nos meus anos de faculdade: os velhos ficam de bico calado, não contam as besteiras que fazem. É só isso.
Com o perdão da palavra, que é a correta, quem faz faz m. Se os velhos têm algo a mais é a malandragem, a noção de que em boca fechada não entra mosca. Porque fazer é errar. Sábia gente, essa que nunca faz. Não têm a consciência pesada. Não têm que fechar as contas, aliás... não têm compromisso nem com a aritmética.
Torcem e retorcem conceitos, gigoleiam filósofos e argumentam mordazmente sem risco de levar um gol no contrapé, pois têm a ficha limpa, conduta ilibada, memória impoluta de quem sempre está com a razão. Eu, se fosse a Razão, dizia que ia fazer xixi, levantava e nunca mais voltava à mesa desses baldios.
Mas comecei o papo pelos anos universitários, que foram ricos e cujas lembranças vão das fragrâncias mais finas ao fedor da supracitada. Estudar, estudar, festar, enfrentar finalmente um desafio intelectual após uma década no moedor de inteligências fundamentais e médias do Brasil, encontrar ruínas no lugar daquilo que contavam pais e tios, ser trainee, foca, estagiário, deixar o cabelo crescer (enquanto tinha), chacoalhar nos ônibus entre os 4 campi da UFRGS, invadir o gabinete do reitor, enfim... todos esses eventos fundamentais para se forjar o caráter de um jovem universitário.
Eu fiz (inclusive m...). Lutei por coisas que já não acho sensatas, como a tal “paridade” de 1/3 de professores, estudantes e funcionários nos colégios eleitorais (hoje estou seguro de que os alunos, sozinhos, escolheriam melhor). Agora, de todas as lorotas, a maior é aquela da universidade pública e “gratuita”. Gratuita para quem, cara-pálida? Alguém paga!
Podemos discutir de onde e como tirar o pila, mas sem essa de gratuita. E tem gente velha que acredita nesta arenga. Acorda, ô! Que eu saiba, Papai Noel já está atolado em dívidas dando presente um dia por ano, imagina todo um ano letivo!
É preocupante que gente importante da academia tenha essa visão mágica, de que existe educação “grátis”. Se bem que há décadas o governo tenta, basta ver o salário dos professores. E pública... tenta retirar um livro na biblioteca. Só se és aluno, professor ou funcionário. Se és o patrocinador, a universidade “pública” não te inclui.
Fidelito, trata de continuar simpático e adorável como és, que vais continuar um vencedor. Não sonha com a universidade, que é a instituição mais conservadora e retrógrada que há – não só no Brasil. Sabe mula, quando empaca? Não, mula não empaca por 500 anos.
O problema é que tem gente lá que estudou, estudou, é tido como sabichão, bidu, mas está esperando o curupira resolver o problema da nossa deseducação. Como dizia meu avô, diploma nunca encurtou a orelha de ninguém. Não bastava um primário bem feito? Que falta faz um primário bem feito!

sábado, 29 de novembro de 2008

Devo tudo ao doutor João Boquinha

Publicada n'O Taquaryense em 10 de julho de 2004.

Fidel, a história não é minha mas me apraz narrar na primeira pessoa. Um amigo me contou como verídica. Troco detalhes, obviamente, mas mantenho o espírito.
Comecei a trabalhar ajudando no bar da família, meio turno, mas só depois da lição de casa. Eles queriam que eu estudasse para “ser alguém”. Aí pelos 17 terminei o 2º grau, como se chamava na época o ensino médio.
Com diploma, era hora de arrumar um emprego. Aí é que entra o deputado João Boquinha, grande homem. Devo tudo o que conquistei a ele que, na época, havia assumido uma diretoria regional de um órgão público. Coisa importante.
Minha mãe conseguiu um cartão dele. Tinha que aproveitar para pedir emprego agora que ele era diretor. Os tempos já eram difíceis, um empurrãozinho no início da carreira viria bem.
Numa terça-feira, lá fui eu. O homem era mesmo importante, porque passei toda a tarde esperando e nem o vi. Mas o paletó estava lá. A secretária disse que era difícil falar com ele, mas que insistisse. Só depois de ir embora lembrei do cartão (e levei bronca em casa).
Voltei. Mostrei o cartão, disse que o Dr. e meu pai eram conhecidos. Ainda mais amável ela foi – ofereceu café, pediu para sentar e aguardar, que na primeira oportunidade eu seria chamado. Só não deu naquele dia porque o Dr. ficou em reunião em algum lugar. Daí, só na outra semana, pois na quinta o Dr. visitaria as bases e só viria na terça seguinte.
Re-voltei e, finalmente, depois de esperar mais, ler numa revista os detalhes da separação do Roberto Carlos (calcule a época!), saber dos progressos do filho da secretária com as aulas particulares de matemática e secar uma garota bem bonitinha que tinha vindo pegar uma assinatura (ô timidez besta, por que não puxei conversa?), vi o deputado pela primeira vez, num abrir de porta. Ele falava com um senhor que dizia “Vou ficar até amanhã, mas nem um hotel decente tem por aqui”.
Minha mãe sempre criticava minha mania de observador – “esse menino vive nas nuvens”. Ela devia ter razão, pois o que me chamou a atenção foi o fato de que o Dr. não usava o paletó sempre pendurado na sua cadeira – que continuava lá –, mas um outro. Estranho...
Também lembrei do meu amigo Maneca, que me havia convidado para sócio no hotel de meia estrela, herança dos seus veteranos que se aposentavam. O Maneca tinha gostado muito das idéias que eu dei quando me falou da encrenca que seria assumir um hotel com pouca receita e muitos defeitos.
Para não espichar muito a história, eu já estava ficando cansado do chá-de-banco e fui falar com o Maneca. Aceitei a oferta (o convite já ia aniversariar, mas estava de pé). Não voltei ao gabinete do Dr., mas jamais teria o melhor hotel da cidade, com salão de conferências para 200 pessoas e um baita restaurante se ele me desse aquele emprego.
Mês que vem inauguramos a terceira filial, vai sair até na TV. Mandei um convite ao ex-deputado, agora conselheiro do tribunal de contas do estado. Afinal, tudo o que conquistei na vida eu devo ao doutor João Boquinha.

Como ganhar no jogo e no soco

Publicada n'O Taquaryense em 3 de julho de 2004.

Fidel, não que eu seja especialista no assunto, que tu sabes que não, mas há jogos e jogos. Falo dos de azar, cuja popularidade parece crescer junto com o desemprego e a falta de perspectiva. Em termos de honestidade, o campeão é a roleta. Já na outra ponta há muitos concorrentes...
Na roleta, a esperança de lucro da banca é de 1/36 – em média, uma a cada 36 rodadas dá zero e a casa leva tudo. Nas outras, uns ganham, outros perdem, a banca tende a ficar na mesma. Pouco gananciosa, não? Calcula quanto dinheiro passa pela mesa numa noite e divide por 36 e terás uma idéia.
Nem me fala em raspadinha, loteria, bingo etc. Mesmo se o governo for o bocão que engole a maior parte (então supostamente ganharíamos todos), não vale a pena. Há estudos que concluem que a Meca da jogatina, Las Vegas, é mais fermento do crime do que dínamo da economia. Tem shows e hotéis de luxo, mas também é isca de bandidagem.
Agora, o jogo pode ser uma mera diversão social, tanto que alguns são ditos “de salão”. Lá no escritório, escapo de entrar no bolão da mega-sena acumulada dizendo que só vou jogar quando for para ganhar. Semana após semana tenho deixado de perder uns pilas, enquanto o pessoal deixa de ganhar uma bolada.
Na semana que vem vai dar... E é aí que todo jogador é fisgado. Assim como uma inocente cervejinha pode ser o bilhete de viagem para um naufrágio etílico, parece que até mesmo a simplória roleta ou um bobo bingo tem potencial para desencaminhar um cristão (ou um budista, ateu, muçulmano... sem distinção de credo).
Mas, Fidelito, se um dia sentires a mão coçar e vier aquela sensação de sorte infalível, dependendo de quão persistente fores na perseguição do grande lance, é certo que depois de algum tempo, mesmo que demore um pouco, vais finalmente conquistar a completa e definitiva bancarrota. Por incrível que pareça, as chances de isso acontecer são de 100%. É o que os matemáticos chamam de evento certo.
É que, como a sorte é aleatória (fora sacanagem, que faço de conta que não existe), no longo prazo a tendência seria empatar – se o jogo fosse honesto. A todo momento, ganha-se ou perde-se um tanto. O que dizem os matemáticos é que, comparada ao jogador, a banca tem um caixa infinito. Dia mais, dia menos, o jogador atinge seu ponto de falência. A banca, jamais.
Aí é que vem a segunda parte da história, como sugere o título. Assim como o jogador, o violento acha que pode ganhar da banca. Uma porrada no desafeto, para fazer justiça. Daí, o desafeto usa a mesma filosofia e começa uma disputa interminável que pode respingar até em ti, meu amável grandalhão Fidel.
E o que fazer? Difícil... Essa gente não costuma aceitar conselho. Assim como a dependência química, a violência é uma doença. Quanto a mim, procuro lembrar do Millôr Fernandes a cada vez que me pisam nos calos: “o mal de discutir com um imbecil é que quem passa pode não notar a diferença”. O melhor é não ceder ao convite para ser imbecil II, porque nesse jogo a bancarrota é o pijama de madeira.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

A felicidade e o pisca-pisca

Publicada n'O Taquaryense em 19 de junho de 2004.

Caro Fidel, falar sobre o sentido da vida numa crônica é dose para leão. Não é porque a auto-ajuda está na moda que eu ganho o direito de azucrinar o leitor com papo-cabeça. Mas é que numa madrugada de domingo sai cada coisa...
Quase todo mundo quer ser feliz; nem todo mundo sabe como. As circunstâncias influem mas não parecem determinar. Senão, todo mundo com boa saúde e dinheiro no bolso seria feliz e quem anda na pindaíba ou vai a hospital mais do que a shopping andaria sempre vestindo uma cara de limão azedo. Mas não é assim.
Acho que deve haver, mesmo, uma receita de felicidade. Eu tenho a imagem do Dalai Lama, o líder budista (religioso e político) tibetano, como alguém que conhece essa receita, sempre sorridente e amável.
Não é uma felicidade besta. Ele vive a realidade de ter seu povo massacrado há décadas, sua terra usurpada. De algum jeito ele consegue transcender a tragédia; de algum lugar ele tira ou recebe a força. De dentro, só pode ser, penso eu.
Mas é um mistério. Porque há situações nas quais a idéia de felicidade parece excluída. Eu estive na missa de sétimo dia do falecimento da filha de um colega e amigo querido. Adolescente, uma jóia. Viajou para outra cidade e dali partiu para a outra viagem, muito inesperada por nós.
Eu, no lugar dele, teria pirado. A esposa, compreensivelmente, não podia consigo mesma e era amparada pelos mais próximos. Ele ali, fazendo o que podia: ficar de pé e receber abraços amigos. Se alguma brisa de felicidade existe no meio deste deserto vazio e horrível, minha filosofia não consegue captar.
Ou capta, sim, quem sabe. Eu fiquei muito impressionado com a forma com que ele, o pai, conseguiu receber dezenas de amigos, parentes, alunos e colegas que estavam ali por ele. A dor eu tenho certeza de que não posso imaginar, mas a coragem de se sentir e se mostrar vivo eu entendi com clareza e fascinação.
Seria mais fácil desejar que a terra se abrisse e o tragasse. O que fazer depois de perder o que de mais precioso se tem? Talvez por ter outras preciosidades, talvez porque é um talento dele, talvez porque saiba da importância que tem para tantas outras pessoas, não havia o menor sinal de desistência.
E talvez os tibetanos (pelo menos o Dalai Lama), bem como o meu amigo, tenham uma noção de felicidade que vai além da filosofia simplesinha com que somos bombardeados. Falo tanto do bombardeio televisivo, porta-bandeira do besteirol, quanto do modelito básico que nos é impingido desde sempre: céu, inferno, culpa, recompensa, sucesso e por aí vai.
Há quem diga que felicidade não existe, o que existe são momentos felizes. Quem sabe é isso mesmo, muita gente concorda. Ou então esta interpretação está tão equivocada quanto a daquele senhor que, ao ser perguntado se “O pisca-pisca está funcionando?”, respondeu: “Está, não está, está, não está...”

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Garotos de salto alto

Publicada n'O Taquaryense em 26 de junho de 2004.

Fidel, tu sabes que eu sou um representante típico da minha geração, afogado em informação. Para sobreviver nesta sociedade do conhecimento, preciso jogar fora muita informação e tentar reter o mais importante, para aperfeiçoar o conhecimento.
É uma loucura. Eu não consigo prestar atenção na TV durante a previsão do tempo ou o futebol, por exemplo. Quero saber se vai chover ou o quê; vai começar a previsão do tempo; A bela apresentadora mostra o Acre; "nuvens no sertão baiano..."; intervalo.
E aqui no Sul do país? Não sei, um pulso de tempo engoliu a previsão para todo o Sul (ou então eu não consegui prestar atenção até o fim). Com futebol, a mesma coisa.
Toda essa explicação para te contar que vi na TV um Brasil versus Chile, eliminatórias do torneio olímpico de futebol de 2004. Tu deves lembrar, foi em janeiro. Vi, mas não enxerguei. O jogo acabou e eu achei estranho: parecia que os jogadores comemoravam algo além da vitória – o que seria?
Na hora não dei bola (apaga logo que aí vem mais informação). Depois da eliminação brasileira, venho a saber que os jogadores estavam, mesmo, comemorando a classificação, e observando bem até se podia ler nos lábios de um deles: "Atenas! Atenas!" (ou seja: estamos classificados!). Fidel, eu não acredito que mais uma vez cometemos essa estupidez!
Faltou combinar com os paraguaios, próximos adversários, que eles não poderiam nos ganhar no último jogo. Primeiro, achei muito digna a atitude do treinador, que assumiu a culpa pela derrota. Mas depois de entender o que aconteceu já não tenho tanta simpatia.
Eu, no lugar dele, teria acabado com a besteira da comemoração antecipada ali mesmo no gramado, arrastando pela orelha se fosse preciso. Mas ele deixou barato e deu no que deu: garotos jogando de salto alto e Paraguai 1x0, classificado no “nosso” lugar.
Todo mundo deveria ver as imagens de 1950: o excesso de confiança, o menosprezo, o pasmo, o choro pela derrota para o Uruguai na final da Copa do Mundo. É preciso assistir a "Barbosa" do Jorge Furtado com Antônio Fagundes.
Para quem não viu: um inventor era criança e estava com o pai no Maracanã naquela final de 1950. Décadas depois, constrói uma máquina do tempo e volta àquele 16 de julho determinado a evitar a tragédia.
Eu acho a história do Maracanazo tão preciosa que paguei caro, lá no Mercado del Puerto de Montevideo, por uma foto dos uruguaios abraçados na comemoração e muitos fotógrafos ao fundo, máquina pendente da mão ou do pescoço. O vendedor viu o brilho nos meus olhos e não deu nenhum desconto, mas me explicou: son fotógrafos brasileños; la Copa del Mundo tiene un campeón, pero a ellos no les interesa.
Por sorte, um fotógrafo uruguaio estava lá para bater a foto de Don Obdulio Varela e companhia. Ao fundo (e atrás e dos lados), 200.000 presunçosos apalermados, além de um país em choque. Um amigo uruguaio me disse que a lição serviu menos ainda para eles, que desde lá só decaíram. Vai entender...

Desde quando és contra o namoro?

Publicada n'O Taquaryense em 17 de abril de 2004.

Fidelito, considerando tua capacidade superior de te mostrares atraente e adorável, de fazer com que todo mundo preste atenção em ti, te faço este pedido de que leves adiante o que segue. Como quem reza para santo.
Talvez eu deva admitir que se trata mais de um devaneio do que de uma mensagem com intenção firme de atingir seu destino. Um dos motivos é que o escalão do destinatário é alto demais para que eu reclame a prerrogativa de ser ouvido. Outra razão é que ele tem dado muita trela para... como direi para não chocar... tapires hirsutos. Daí, não me animo a pedir a palavra, pois obviamente me considero excluído da classe.
Mas vá lá. Já que me franquearam este espaço privilegiado, intercedo junto a ti, estimado Fidel, para que faças chegar ao destinatário esta petição (até porque, como tocayo do chefe cubano, podes lhe cair simpático).
Então mando: Caro Lula, de primeira esclareço que não sou um dos cínicos que andam por aí de cueca e fazem o maior escarcéu quando algum dos teus aparece com menos do que um escafandro. Pelo contrário, aqui mesmo já reconheci que só te entregaram a chave do armário quando as traças estavam empanturradas.
O problema é o seguinte, usando uma analogia que eu sei que te agrada: puseste em campo, por dó ou dívida, uma legião de pernas-de-pau. Manda para o chuveiro! Olha que ruindade pega.
Como pode? Teu ministro da ginástica olímpica interditou a Daiane dos Santos com a desculpa de que ela deve prestar o serviço militar. Hem? E por que no ministério do tênis puseste um que não joga nem ping-pong, mas aposentou o Guga por decreto? Só faltou impor ao simpático manezinho uma licença-maternidade...
No ministério-dos-esportes-que-não-dão-voto puseste um afoito que falou em botar laxante na água dos adversários. Daí, felizmente o mandaste embora e nomeaste um ponta-de-lança habilidoso. Mas ele anunciou que não vai entrar driblando defesa adentro para não destoar do resto da equipe. No ministério do café, almoço e janta a conversa é animada (sinal de que a bóia é fraca). Como se costumava dizer, “Assim não dá!”
Certo, acabas de assentar uma espécie de Paulo César Carpeggiani no ministério da merenda – alvíssaras! E Don Elias Figueroa garante a defesa do ministério do cofrinho. Mas por que se limitar aos poucos craques que tens à volta? Olha que os pernas-de-pau que investiste de poder estão mostrando a cara: mandam botar saibro na chuteira de qualquer um que se mostre jeitoso com uma bola no pé.
Em suma, companheiro, usando outra metáfora que te agrada e correndo o risco de descambar para o mau gosto, te digo que não tenho nada contra o amor solitário ou a abstinência, mas por que dar a chave do cartório a essa gente? Por que lhes dar o poder de proibir o amor à vera? Eles, que não fazem e não querem que ninguém faça? Se negam a sequer ouvir quem faz contar das delícias; só ouvem o coro lamurioso dos mirrados e baldios cuja delícia é empatar. Por que, se nunca foste um deles? Ou agora és contra o namoro? Eu, hem? Me inclui fora dessa!

O dedão, o dedo e outras grosserias

Publicada n'O Taquaryense em 29 de maio de 2004.

Dileto e bem-educado Fidel, que coisa esse fichamento policial dos cidadãos norte-americanos que entram no Brasil! Fotografia segurando tabuleta com data, dedão lambuzado de graxa para as digitais. Pensei: que ruim, não tem sentido. Porém, não é motivo para alguém sapatear, gritar ou esmurrar. É a lei, acata-se.
Vi no jornal que vários foram mandados de volta por negar-se a passar pela romaria, e um até foi preso – um piloto que na hora de tirar a foto segurou a tabuleta mostrando acintosamente “o dedo”, num gesto obsceno que não preciso desenhar (poupo meus preciosos leitores). Isso me trouxe à lembrança acontecimentos da infância e da juventude.
Num certo dia da meninice, na praia, um garoto conhecido, eu e mais alguém passamos boa parte da manhã pescando peixinhos com uma rede de saco de aniagem. Bacana, gostei. Mais para o fim da manhã, havia uma boa quantidade de peixinhos para uma fritada.
Inocentemente eu perguntei: vamos dividir? “Dividir, nada. Isso é tudo meu”. Não deu raiva, pois eu nem saberia o que fazer com os peixes e se lembro bem a rede era dele, afinal. Perguntei por perguntar, nem tinha grande interesse. Apenas me parecia a coisa mais natural do mundo fazer aquela partilha.
Pano rápido. Uns dez anos depois, me pedem para ligar para o mesmo garoto para saber de um certo papel de uma negociação, que ele deveria ter enviado pelo correio. “Ué, mas eu já mandei, tu estás louco?” Não, eu não estava louco, nem entendi por que a resposta tinha um vezo de rispidez. Talvez fosse o jeito dele. Deixei para lá, naquele momento.
Passa dia, tal e coisa, aperta de novo, venho a descobrir que não somente o papel não havia sido enviado, mas também que o motivo eram uns pilas a mais que ele ganhara omitindo detalhes do negócio, prejudicando o parceiro (o tal que me pedira para ligar). Achou que se fazendo de besta iam-se esquecer do papel. Conheciam-se havia décadas, acabou o relacionamento ali. Que coisa, hem, Fidel?
Volto aos fichados. Estou bastante seguro de que os cidadãos norte-americanos foram informados de que o procedimento incômodo e, para alguns, deveras grosseiro, devia-se à reciprocidade de tratamento – o governo deles faz o mesmo com os brasileiros. Na verdade faz bem pior e isso é só um detalhe num rosário de ruindades que não vou desfiar aqui – a leitora que negue a ruindade, se quiser.
Um amicíssimo meu (que nada tem de comunista, caro leitor) gostou da nossa política. É um recado para quem pensa que ainda somos aquela imensa tribo simpática e subserviente. “Nunca fizemos nada contra eles”, ele me disse. “Seqüestramos o embaixador deles”, obtemperei eu (de sacanagem). “Que prendam o Gabeira”, retrucou ele com um sorriso.
Quer dizer que o garoto mal-educado, avarento e agressivo não gostou da moeda de troca? Que vá amuar-se em casa. Por que tratar bem gente ruim? E quem merece – clamo a ti, ó leitor –, tem recebido flores?

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

É dos carecas

Publicada n'O Taquaryense em 22 de maio de 2004.

Fidel, a marchinha é antiga, mas bem conhecida: “é dos carecas que elas gostam mais”. Parece que as mulheres não concordam, mas há debates acalorados sobre o tema. É involuntária e tão comum entre os homens que, afinal, a calva é só uma característica.
Se é tão comum, não deveria causar qualquer conseqüência. Mas eu próprio experimento um certo espanto quando ouço alguém se referir a mim como “meio careca” – eu me considero meio cabeludo! Enquanto há um fio, há esperança.
Conheço um senhor de seus 50 anos, careca ampla e lustrosa, que mantém em seu escritório um retrato dos tempos da jovem guarda com uma vasta cabeleira. Aos que estranham, ele retruca: “Mas é assim que eu me vejo!” Que cara-de-pau! Pudera, Fidelito, que lhe tenham aplicado certo apelido quando apareceu com uma camisa de malha café-com-leite de gola rolê... (imagina a cena e vais entender; o pudor me interdita).
Mas há uma careca diferente da típica masculina e que não é voluntária nem involuntária; o fato é que é necessária. É um sinal de que a quimioterapia está funcionando e as células que se multiplicam muito rapidamente estão sendo barradas. Há esse efeito estético porque, entre as células normais, as cabeludas são das que mais crescem. Para as cancerosas pararem, elas também param.
Andei lendo coisas acadêmicas e populares sobre pacientes de câncer. Os que participaram de pesquisas dizem coisas preciosas: “eu tô com essa esperança de viver porque acho que vou dar algo também pros outros ainda”; “eu não me abalei quando descobri que estava com câncer, mas me abalei de ver como eles reagiram”.
Tem o clube do confessionário: “antes era farra, muita farra, não levava nada a sério”. Mas o máximo da honestidade eu achei nesta resposta para “o que é qualidade de vida para você?”: “deixa eu pensar um pouquinho...”
Parece que o câncer sempre existiu. Foi registrado pelo Hipócrates (aí por 300 A.C.). Galeno, outro batuta, desenganou seus pacientes – não havia muito a fazer aí pelos 150 D.C.
Michelangelo retratou um caso avançado de câncer no seio esquerdo da “Noite” (1524). Em seguida descobriram a célula; isto ajudou a evolução do tratamento para as mais de 100 doenças que respondem pelo nome de câncer, que algumas pessoas evitam, o que em nada ajuda. Chamar de neoplasia é um despiste inútil.
Entre os estudiosos atuais, Simonton diz que nenhum deficiente mental tem câncer, o que aviva a idéia de que condições estressantes podem estar no centro da causa. Ele vai além e diz que o câncer pode ser uma solução, uma saída (inconsciente) encontrada.
Então, Fidelito, a gente se pergunta: o que fazer com as feridas da alma? Se tudo o que se sabe é “nenhum fumo (passivo inclusive), alimentação saudável, vida ativa...”? Um abraço ajuda, então mando um dos fortes. E se eu soubesse como fazer o transplante, pegava a alegria da marchinha carnavalesca e entregava para todos os carecas.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Meia volta, volta e meia

Publicada n'O Taquaryense em 15 de maio de 2004.

Fidel, uma vez comprei um livro cujo título seria algo assim: “Como Confúcio pediria aumento?”. Foi pouco antes de voltar das terras distantes. Gostei tanto que cheguei a conversar com a autora, que me disse que uma versão brasileira estava a caminho. Isso foi há uns 3 anos e nunca mais.
A idéia era aplicar a filosofia oriental a situações caroçudas do trabalho cotidiano. Me encantou a simplicidade e iluminação das respostas para coisas como a pergunta do título e “Não parece certo que pessoas que não são íntegras estejam se saindo melhor do que quem faz a coisa certa. Por que elas estão tendo sucesso?”. Quem sabe um dia entro em detalhes, mas não é por isso que puxei essa conversa agora.
Uma idéia bem geral, que os iniciados nas coisas chinesas devem saber bem mas para a minha ignorância chegou a ser novidade, é que tudo são ciclos. Achei isso um bom argumento para regatear com os papos de velho que de vez em quando jogam na gente ou a gente mesmo vai montando (é duro admitir...).
“No meu tempo as moças se davam mais ao respeito”. É, e tinham dono, passavam do pai pro marido e alguns nem eram bons. “Os jovens eram mais respeitosos e não debochavam dos mais velhos”. Claro, eram os mais velhos que abusavam (e claro que isso não se aplica a todos os velhos velhos, assim como os novos novos não são todos mal-educados).
E “não se vivia com medo da violência”. Justo, desde que as idéias ou alguma combinação rara de vontade, iniciativa, cor da pele, lugar, sexo, comportamento etc. não fosse por demais inadequada. Caso fosse, estava-se frito ou se teria de rebolar muito. As artes e as letras devem muito a esses movimentos rebolativos.
Deves me achar uma espécie de Gardel com seu Cambalache, dizendo que la vida fue y será una porquería. Largo de ser exagerado, então. Já deu para passar a idéia de que as coisas vão e vêm, dinheiro entra, dinheiro sai etc. Mas ainda assim...
Fica-se com a impressão de que este novo milênio tem sido mais de perdas do que de ganhos. O leitor aí, com as suas, sabe do que eu falo. Mesmo quem tem uma vida supimpa reconhece a dureza à volta e estamos todos tentando nos adaptar, trans-por, sobre-viver.
Como dona Zoraide, que não se conformou de ficar atrás do neto de 5 anos em todas as questões informáticas. Foi à luta: estudou, clicou, cutempeistou, escaneou, becapeou. Cheia de coragem, pediu ao netinho que a sabatinasse, e foi assim: “Vó, o que é que é redondo, tem duas letras, começa com c e tem um furo no meio?”
Dona Zoraide passa bem, o desmaio não foi nada. Apenas recebeu uma prescrição de remédios e caminhadas regulares. Mas não chegou a ouvir o neto esclarecer: “é CD!”.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Recuerdos de 2004

[Publicada n'O Taquaryense em 20 de março de 2004]

Fidel, as previsões para 2003 foram acompanhadas com agudo interesse por alguns leitores. Houve quem apontasse curiosas semelhanças com eventos que efetivamente aconteceram, mas eu fui claro e reitero que qualquer semelhança terá sido coincidência.
Agora, olha só: reconheço uma frase do Otto Lara Resende que por certo estava no meu subconsciente quando previ 2003: “Neste Brasil até o passado se tornou imprevisível”. Achei aqui, entre antigos alfarrábios. É a tal Lei do Lavoisier: nada se cria, tudo se copia, inclusive minhas parcas idéias.
Para falar a verdade, não me surpreende que o assunto “previsões” capte alguma atenção, pois muita gente gosta de elucubração. Só que antecipar o passado, para o vidente, é bem mais difícil do que projetar o porvir. É essa imprevisibilidade do pretérito. Eu fiquei demolido com tanto esforço futurista.
Então, já que hoje quero sossego, invisto numa retrospectiva de 2004, munido agora de envelopes de aspirina amassados, servindo de búzios, pois os de engov já estão obsoletos. Vamos lá, recordar é viver.
Em 2004 os preços aumentaram, assim como o trabalho. As grandes empresas encerraram o atendimento ao consumidor feito por pessoas, colocando no lugar o atendimento automático por telefone, o que racionalizou muito o jeito de se perder tempo e não reaver o dinheiro.
Eles firmaram jurisprudência no exercício do sagrado direito de ordenhar o “mercado” (isto é, nós). Para um banco estrangeiro, não existe mais chamada gratuita, nem para comunicar roubo de cartão de crédito. Para mim, o nome do banco virou four-letter word (o palavrão deles).
O sistema político brasileiro continuou se aperfeiçoando em 2004. Orgulho nosso, temos mandatários que promovem os sublimes valores familiares (em geral, promovem gente da própria família). O amor é lindo: é filho assessor, filha no gabinete do amigo, o tradicional cunhado (afinal, é parente?)... Até sogra tem boquinha, sempre sem concurso.
Os governos brasileiros continuaram mesclando a tenacidade e competência de uns poucos homens e mulheres de visão com a atrocidade dos de sempre, garantindo nosso rumo às trevas. Que ano, Fidelito! Mas não foi em 2004 que entramos definitivamente ralo abaixo e fossa adentro.
Fechamos o ano preservando o credo nacional de que é melhor todos pagarem pelo erro de um do que cada um ser responsável e imputável. É muito mais democrático. O buraco fez quebrar o carro? Ninguém é culpado. Pagou o imposto mas ainda aparece como devedor? É assim mesmo.
Já no fim de 2004, perguntei às gotas d’água quem foi a responsável pela enchente. “Eu não! Eu não! Eu não!” A irresponsabilidade em grupo é muito mais democrática.
Paciência, o jeito é todo mundo pagar essa nova “taxa para reaparelhar o reaparelhamento destruído pela enchente”; é muito mais democrático. O governo é que nem flanelinha: cordial, a princípio não-violento. Não dá nada em troca do nosso dinheiro, mas pagar sem bufar ainda é a saída mais barata. Que venha 2005, se for homem!

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Previsões para 2003

[Publicada n'O Taquaryense em 31 de janeiro de 2004]

Caríssimo Fidel, não entendeste mal. Resolvi escrever minhas previsões para o ano passado porque não vejo grande mérito em escrever prognósticos que ninguém vai querer bater com os fatos (“ninguém” são os órgãos de imprensa que todo ano vem com a mesma lengalenga).
Pai Mário abre o cafofo e joga seus búzios (na verdade são envelopes de engov amassados, dá no mesmo). Já advirto: também não admito que me cobrem as previsões. São verossímeis demais e eu não sou besta de querer arrumar encrenca. Qualquer semelhança dos personagens das previsões com pessoas ou organizações terá sido mera coincidência.
Começo com a que me é mais cara, literalmente: no décimo-primeiro mês, na ilha capital (só no Brasil são três capitais em ilhas; essa vagueza é um dos principais charmes das previsões e também um recurso de Pai Mário para jamais errar), emergirão seres do oceano da tolice que, com criatividade, deixarão 300.000 pessoas sem luz por três dias. Serão secundados por seres homeomorfos da companhia de águas, que nunca pensaram em instalar um gerador de energia e, assim, as 300.000 pessoas ficarão também sem água.
Tem mais. Os seres fritarão a ponte (!) que liga a ilha ao continente, complicando o trânsito por semanas. Jornalistas independentes produzirão um relato competente mas não conseguirão vendê-lo a qualquer órgão de imprensa.
Prevejo que não conseguirão publicar nem como matéria paga, nem que juntem as economias dos parentes até o 48º grau. Prevejo que os responsáveis promoverão a primeira entrevista muda do rádio brasileiro – uma loucura, Fidelito! Mais ou menos um mês depois, conseguirão provocar outro incêndio no mesmo lugar, quase igual – incrível! Justiça seja feita, o “gato” que farão em alta tensão para a luz voltar será coisa de bravo.
O ano iniciará com um novo líder no comando da nação brasileira. Seus inimigos irão se acostumar, seus seguidores irão se decepcionar, e todo mundo haverá de concordar que ele pegou a coisa para lá de precária. Alguns comemorarão um tal de baita superávit primário, só que pouca gente sabe que depois de pagar o juro isso vira déficit. Considerando que há muito chegamos no último buraco da cinta e já fizemos vários outros para a calça não cair, sempre devendo mais, dá para desconfiar o rumo que tomamos? Mas não chegaremos lá em 2003, ainda tem um tempinho.
Já no crepúsculo do ano, prevejo que encontrarei 180 novos e-mails após 3 dias de viagem, isso já considerando o filtro instalado por meu competente administrador de sistemas. Só 5% me interessam, mas outros 5% pelo menos são de temas de interesse profissional. Grande parte dos 90% de lixo oferece produtos para aumentar partes da anatomia que, francamente, não carece. Mas é feio a gente se gabar, então paro por aqui.

‘Cença...

Publicada n'O Taquaryense em 10 de janeiro de 2004.

Fidel, se o Henfil escrevia para a mãe, se tanta gente publica cartas, porque não posso publicar as minhas para meu interlocutor mais pensativo e ponderado? Alguém me recomendou esclarecer que não és cubano (ora, quem pensaria isso?).
Confesso que o convite para publicar n’O Taquaryense revolveu-me em orgulho e insegurança. Insegurança porque impõe a necessidade de me apresentar e de me enturmar em uma plêiade de articulistas (e de leitores) à qual é um privilégio pertencer. Apresentar-se dói que nem aquelas redações “minhas férias” dos primeiros anos de escola, a gente tendo que dar explicação.
Como fazer? Não haveria um jeito prático de fazer de conta que já estou por aqui há algum tempo em vez de chegar com esta cara de migué, “não sou daqui, onde é que guardo essa mão”? Entrar de costas, quem sabe? (Mas nem no cinema isso funciona, é só uma piada inocente). Comentar algo em relação à “última edição desta coluna” e rezar para que ninguém note? (Mas sempre haverá um(a) inocente útil a importunar a redação, querendo a tal edição...)
Melhor confessar que sou novo aqui e me apresentar. Além de amigo do destinatário, cabe declarar que sou leitor assíduo d’O Taquaryense. Aliás, é o único jornal que leio regularmente. “Regularmente” é eufemismo, leio sempre (e os demais, quase nunca, mas não é hora de falar disso).
Conheço boa parte dos personagens noticiados. Para completar a apresentação, declaro que fiz um curso de redação oficial por correspondência e um curso de extensão sobre cometas (bonito de ver, no Planetário, em Porto Alegre, uma luazinha chispando o céu em alta rotação). Já dei minhas voltas na Lagoa Armênia e até já fiz carreata em Taquari há muito tempo, embora nunca tenha sido morador.
Para quem acredita que só o supérfluo é relevante, estou apresentado. É que nem caderno de recordação, já que falei nos primeiros anos de escola. Interessa é se “já foste beijado”, não o CPF ou a ortografia. Não faz mal que na hora de botar a cedilha bata um nervoso e saia “reçordacão”.
A parte do orgulho já é mais fácil de explicar. O segundo jornal mais antigo do Rio Grande, 116 anos, com impressão tipográfica montada à mão numa Marinoni adquirida junto ao velho Correio do Povo, em 1910, numa histórica cidade gaúcha, pequena, mas que tem três jornais... é a glória.
Fidel, fica combinado. Se o seu Plínio topar, vamos publicar essas mal traçadas. Tenho a crença de que, mesmo dirigidas a ti, as cartas podem interessar a qualquer um(a). Quem sabe até alcancem algum particular, algum assunto caro ou íntimo do leitor. Mas fico por aqui, até outra vez.