quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Ouviram e não entenderam do Ipiranga

Publicada n'O Taquaryense em 31 de julho de 2004.

Fidel, vou facilitar a tua vida para que não passes mais de 30 anos procurando o sujeito da primeira oração do hino nacional, que nem eu: são as margens plácidas. São as margens plácidas do Ipiranga que ouviram o brado retumbante de um povo heróico.
E desde quando margem tem ouvido? E que povo heróico tonitruante era esse à beira do riacho? Não tenho idéia. Dizem historiadores alternativos que a única coisa que as margens plácidas do Ipiranga podem ter ouvido foi o grunhir arfante do proclamador a aliviar-se de uma indisposição intestinal das brabas. Despeito ou verdade, não sei – o fato é que os historiadores chapa branca tanto pintaram de bravo e sublime o covarde e tacanho que ninguém mais acredita na pose dos nossos próceres.
Não é à toa que aparecem as paródias do tipo “japonês tem quatro filhos”. Pelo menos aí o nosso precário entendimento consegue achar sentido e graça. Para que um hino pomposo e rebuscado? Ainda que nossos hinos cantem coisas bonitas em vez de estripar e decapitar gente, poucos têm a beleza e a concisão do Farroupilha, que canta o precursor da liberdade e a virtude de um povo. Não é só por nativismo que aqui se canta o hino, é porque faz sentido!
Voltando às margens do Ipiranga, eu achava óbvio que o escrevinhador-copiador esquecera a crase (que existiria assim como no começo desta frase), tornando o sujeito indefinido. Não que seja tão raro o domínio da crase, mas eu assumo que o último revisor é sempre um analfa de pai e mãe. Senão, como explicar as placas de trânsito do tipo “à 100 MTS” e “motorista fique alerto”?
Há gente letrada no departamento de trânsito, tenho certeza, mas não é gente que pinta placa. Bem nos alertou Quintana de que “um engano em bronze é um engano eterno”. Em tinta verde e branca não é eterno, mas nos atormenta por uns pares de anos.
Confiante pelo achado do sujeito, fiz uma brincadeira: pus a primeira oração na ordem direta e joguei num tradutor automático (www.systransoft.com) para o inglês. Surpresa, Fidelito! Não é que traduziu direitinho? E ainda transpus de volta ao português – falharam algumas palavras mas a frase ainda é razoável: “As bordas placid do Ipiranga tinham ouvido o shout trovejando de um pessoa heroic”. Pelo jeito faltam coisas no dicionário inglês-português.
Um professor me contou que recebeu um aluno argentino na sua turma de engenheirandos e – incrível! – o garoto é capaz de formar frases, ainda por cima fazendo concordar artigos, verbos e complementos. Outra professora tem uma dupla de caboverdianos com semelhantes e espantosas habilidades. Ainda outro argumentou que isso ocorre por que os estrangeiros, quando vêm para cá, aprendem a gramática sem vícios e portanto escrevem melhor que os brasileiros. Tive vergonha de lembrá-lo que a língua-mãe dos caboverdianos é... português! Ai, ai, nem os mestres se salvam.
Pensando bem, acho que vou pagar uma revisão caprichada para estas mal traçadas. Não me admiraria se descobrisse que, na tentativa de imitar o poeta que roça na língua de Luís de Camões, estivesse a dar-lhe um belo de um pontapé nas partes pudendas. Ninguém se salva!

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