sábado, 29 de novembro de 2008

Devo tudo ao doutor João Boquinha

Publicada n'O Taquaryense em 10 de julho de 2004.

Fidel, a história não é minha mas me apraz narrar na primeira pessoa. Um amigo me contou como verídica. Troco detalhes, obviamente, mas mantenho o espírito.
Comecei a trabalhar ajudando no bar da família, meio turno, mas só depois da lição de casa. Eles queriam que eu estudasse para “ser alguém”. Aí pelos 17 terminei o 2º grau, como se chamava na época o ensino médio.
Com diploma, era hora de arrumar um emprego. Aí é que entra o deputado João Boquinha, grande homem. Devo tudo o que conquistei a ele que, na época, havia assumido uma diretoria regional de um órgão público. Coisa importante.
Minha mãe conseguiu um cartão dele. Tinha que aproveitar para pedir emprego agora que ele era diretor. Os tempos já eram difíceis, um empurrãozinho no início da carreira viria bem.
Numa terça-feira, lá fui eu. O homem era mesmo importante, porque passei toda a tarde esperando e nem o vi. Mas o paletó estava lá. A secretária disse que era difícil falar com ele, mas que insistisse. Só depois de ir embora lembrei do cartão (e levei bronca em casa).
Voltei. Mostrei o cartão, disse que o Dr. e meu pai eram conhecidos. Ainda mais amável ela foi – ofereceu café, pediu para sentar e aguardar, que na primeira oportunidade eu seria chamado. Só não deu naquele dia porque o Dr. ficou em reunião em algum lugar. Daí, só na outra semana, pois na quinta o Dr. visitaria as bases e só viria na terça seguinte.
Re-voltei e, finalmente, depois de esperar mais, ler numa revista os detalhes da separação do Roberto Carlos (calcule a época!), saber dos progressos do filho da secretária com as aulas particulares de matemática e secar uma garota bem bonitinha que tinha vindo pegar uma assinatura (ô timidez besta, por que não puxei conversa?), vi o deputado pela primeira vez, num abrir de porta. Ele falava com um senhor que dizia “Vou ficar até amanhã, mas nem um hotel decente tem por aqui”.
Minha mãe sempre criticava minha mania de observador – “esse menino vive nas nuvens”. Ela devia ter razão, pois o que me chamou a atenção foi o fato de que o Dr. não usava o paletó sempre pendurado na sua cadeira – que continuava lá –, mas um outro. Estranho...
Também lembrei do meu amigo Maneca, que me havia convidado para sócio no hotel de meia estrela, herança dos seus veteranos que se aposentavam. O Maneca tinha gostado muito das idéias que eu dei quando me falou da encrenca que seria assumir um hotel com pouca receita e muitos defeitos.
Para não espichar muito a história, eu já estava ficando cansado do chá-de-banco e fui falar com o Maneca. Aceitei a oferta (o convite já ia aniversariar, mas estava de pé). Não voltei ao gabinete do Dr., mas jamais teria o melhor hotel da cidade, com salão de conferências para 200 pessoas e um baita restaurante se ele me desse aquele emprego.
Mês que vem inauguramos a terceira filial, vai sair até na TV. Mandei um convite ao ex-deputado, agora conselheiro do tribunal de contas do estado. Afinal, tudo o que conquistei na vida eu devo ao doutor João Boquinha.

Como ganhar no jogo e no soco

Publicada n'O Taquaryense em 3 de julho de 2004.

Fidel, não que eu seja especialista no assunto, que tu sabes que não, mas há jogos e jogos. Falo dos de azar, cuja popularidade parece crescer junto com o desemprego e a falta de perspectiva. Em termos de honestidade, o campeão é a roleta. Já na outra ponta há muitos concorrentes...
Na roleta, a esperança de lucro da banca é de 1/36 – em média, uma a cada 36 rodadas dá zero e a casa leva tudo. Nas outras, uns ganham, outros perdem, a banca tende a ficar na mesma. Pouco gananciosa, não? Calcula quanto dinheiro passa pela mesa numa noite e divide por 36 e terás uma idéia.
Nem me fala em raspadinha, loteria, bingo etc. Mesmo se o governo for o bocão que engole a maior parte (então supostamente ganharíamos todos), não vale a pena. Há estudos que concluem que a Meca da jogatina, Las Vegas, é mais fermento do crime do que dínamo da economia. Tem shows e hotéis de luxo, mas também é isca de bandidagem.
Agora, o jogo pode ser uma mera diversão social, tanto que alguns são ditos “de salão”. Lá no escritório, escapo de entrar no bolão da mega-sena acumulada dizendo que só vou jogar quando for para ganhar. Semana após semana tenho deixado de perder uns pilas, enquanto o pessoal deixa de ganhar uma bolada.
Na semana que vem vai dar... E é aí que todo jogador é fisgado. Assim como uma inocente cervejinha pode ser o bilhete de viagem para um naufrágio etílico, parece que até mesmo a simplória roleta ou um bobo bingo tem potencial para desencaminhar um cristão (ou um budista, ateu, muçulmano... sem distinção de credo).
Mas, Fidelito, se um dia sentires a mão coçar e vier aquela sensação de sorte infalível, dependendo de quão persistente fores na perseguição do grande lance, é certo que depois de algum tempo, mesmo que demore um pouco, vais finalmente conquistar a completa e definitiva bancarrota. Por incrível que pareça, as chances de isso acontecer são de 100%. É o que os matemáticos chamam de evento certo.
É que, como a sorte é aleatória (fora sacanagem, que faço de conta que não existe), no longo prazo a tendência seria empatar – se o jogo fosse honesto. A todo momento, ganha-se ou perde-se um tanto. O que dizem os matemáticos é que, comparada ao jogador, a banca tem um caixa infinito. Dia mais, dia menos, o jogador atinge seu ponto de falência. A banca, jamais.
Aí é que vem a segunda parte da história, como sugere o título. Assim como o jogador, o violento acha que pode ganhar da banca. Uma porrada no desafeto, para fazer justiça. Daí, o desafeto usa a mesma filosofia e começa uma disputa interminável que pode respingar até em ti, meu amável grandalhão Fidel.
E o que fazer? Difícil... Essa gente não costuma aceitar conselho. Assim como a dependência química, a violência é uma doença. Quanto a mim, procuro lembrar do Millôr Fernandes a cada vez que me pisam nos calos: “o mal de discutir com um imbecil é que quem passa pode não notar a diferença”. O melhor é não ceder ao convite para ser imbecil II, porque nesse jogo a bancarrota é o pijama de madeira.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

A felicidade e o pisca-pisca

Publicada n'O Taquaryense em 19 de junho de 2004.

Caro Fidel, falar sobre o sentido da vida numa crônica é dose para leão. Não é porque a auto-ajuda está na moda que eu ganho o direito de azucrinar o leitor com papo-cabeça. Mas é que numa madrugada de domingo sai cada coisa...
Quase todo mundo quer ser feliz; nem todo mundo sabe como. As circunstâncias influem mas não parecem determinar. Senão, todo mundo com boa saúde e dinheiro no bolso seria feliz e quem anda na pindaíba ou vai a hospital mais do que a shopping andaria sempre vestindo uma cara de limão azedo. Mas não é assim.
Acho que deve haver, mesmo, uma receita de felicidade. Eu tenho a imagem do Dalai Lama, o líder budista (religioso e político) tibetano, como alguém que conhece essa receita, sempre sorridente e amável.
Não é uma felicidade besta. Ele vive a realidade de ter seu povo massacrado há décadas, sua terra usurpada. De algum jeito ele consegue transcender a tragédia; de algum lugar ele tira ou recebe a força. De dentro, só pode ser, penso eu.
Mas é um mistério. Porque há situações nas quais a idéia de felicidade parece excluída. Eu estive na missa de sétimo dia do falecimento da filha de um colega e amigo querido. Adolescente, uma jóia. Viajou para outra cidade e dali partiu para a outra viagem, muito inesperada por nós.
Eu, no lugar dele, teria pirado. A esposa, compreensivelmente, não podia consigo mesma e era amparada pelos mais próximos. Ele ali, fazendo o que podia: ficar de pé e receber abraços amigos. Se alguma brisa de felicidade existe no meio deste deserto vazio e horrível, minha filosofia não consegue captar.
Ou capta, sim, quem sabe. Eu fiquei muito impressionado com a forma com que ele, o pai, conseguiu receber dezenas de amigos, parentes, alunos e colegas que estavam ali por ele. A dor eu tenho certeza de que não posso imaginar, mas a coragem de se sentir e se mostrar vivo eu entendi com clareza e fascinação.
Seria mais fácil desejar que a terra se abrisse e o tragasse. O que fazer depois de perder o que de mais precioso se tem? Talvez por ter outras preciosidades, talvez porque é um talento dele, talvez porque saiba da importância que tem para tantas outras pessoas, não havia o menor sinal de desistência.
E talvez os tibetanos (pelo menos o Dalai Lama), bem como o meu amigo, tenham uma noção de felicidade que vai além da filosofia simplesinha com que somos bombardeados. Falo tanto do bombardeio televisivo, porta-bandeira do besteirol, quanto do modelito básico que nos é impingido desde sempre: céu, inferno, culpa, recompensa, sucesso e por aí vai.
Há quem diga que felicidade não existe, o que existe são momentos felizes. Quem sabe é isso mesmo, muita gente concorda. Ou então esta interpretação está tão equivocada quanto a daquele senhor que, ao ser perguntado se “O pisca-pisca está funcionando?”, respondeu: “Está, não está, está, não está...”

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Garotos de salto alto

Publicada n'O Taquaryense em 26 de junho de 2004.

Fidel, tu sabes que eu sou um representante típico da minha geração, afogado em informação. Para sobreviver nesta sociedade do conhecimento, preciso jogar fora muita informação e tentar reter o mais importante, para aperfeiçoar o conhecimento.
É uma loucura. Eu não consigo prestar atenção na TV durante a previsão do tempo ou o futebol, por exemplo. Quero saber se vai chover ou o quê; vai começar a previsão do tempo; A bela apresentadora mostra o Acre; "nuvens no sertão baiano..."; intervalo.
E aqui no Sul do país? Não sei, um pulso de tempo engoliu a previsão para todo o Sul (ou então eu não consegui prestar atenção até o fim). Com futebol, a mesma coisa.
Toda essa explicação para te contar que vi na TV um Brasil versus Chile, eliminatórias do torneio olímpico de futebol de 2004. Tu deves lembrar, foi em janeiro. Vi, mas não enxerguei. O jogo acabou e eu achei estranho: parecia que os jogadores comemoravam algo além da vitória – o que seria?
Na hora não dei bola (apaga logo que aí vem mais informação). Depois da eliminação brasileira, venho a saber que os jogadores estavam, mesmo, comemorando a classificação, e observando bem até se podia ler nos lábios de um deles: "Atenas! Atenas!" (ou seja: estamos classificados!). Fidel, eu não acredito que mais uma vez cometemos essa estupidez!
Faltou combinar com os paraguaios, próximos adversários, que eles não poderiam nos ganhar no último jogo. Primeiro, achei muito digna a atitude do treinador, que assumiu a culpa pela derrota. Mas depois de entender o que aconteceu já não tenho tanta simpatia.
Eu, no lugar dele, teria acabado com a besteira da comemoração antecipada ali mesmo no gramado, arrastando pela orelha se fosse preciso. Mas ele deixou barato e deu no que deu: garotos jogando de salto alto e Paraguai 1x0, classificado no “nosso” lugar.
Todo mundo deveria ver as imagens de 1950: o excesso de confiança, o menosprezo, o pasmo, o choro pela derrota para o Uruguai na final da Copa do Mundo. É preciso assistir a "Barbosa" do Jorge Furtado com Antônio Fagundes.
Para quem não viu: um inventor era criança e estava com o pai no Maracanã naquela final de 1950. Décadas depois, constrói uma máquina do tempo e volta àquele 16 de julho determinado a evitar a tragédia.
Eu acho a história do Maracanazo tão preciosa que paguei caro, lá no Mercado del Puerto de Montevideo, por uma foto dos uruguaios abraçados na comemoração e muitos fotógrafos ao fundo, máquina pendente da mão ou do pescoço. O vendedor viu o brilho nos meus olhos e não deu nenhum desconto, mas me explicou: son fotógrafos brasileños; la Copa del Mundo tiene un campeón, pero a ellos no les interesa.
Por sorte, um fotógrafo uruguaio estava lá para bater a foto de Don Obdulio Varela e companhia. Ao fundo (e atrás e dos lados), 200.000 presunçosos apalermados, além de um país em choque. Um amigo uruguaio me disse que a lição serviu menos ainda para eles, que desde lá só decaíram. Vai entender...

Desde quando és contra o namoro?

Publicada n'O Taquaryense em 17 de abril de 2004.

Fidelito, considerando tua capacidade superior de te mostrares atraente e adorável, de fazer com que todo mundo preste atenção em ti, te faço este pedido de que leves adiante o que segue. Como quem reza para santo.
Talvez eu deva admitir que se trata mais de um devaneio do que de uma mensagem com intenção firme de atingir seu destino. Um dos motivos é que o escalão do destinatário é alto demais para que eu reclame a prerrogativa de ser ouvido. Outra razão é que ele tem dado muita trela para... como direi para não chocar... tapires hirsutos. Daí, não me animo a pedir a palavra, pois obviamente me considero excluído da classe.
Mas vá lá. Já que me franquearam este espaço privilegiado, intercedo junto a ti, estimado Fidel, para que faças chegar ao destinatário esta petição (até porque, como tocayo do chefe cubano, podes lhe cair simpático).
Então mando: Caro Lula, de primeira esclareço que não sou um dos cínicos que andam por aí de cueca e fazem o maior escarcéu quando algum dos teus aparece com menos do que um escafandro. Pelo contrário, aqui mesmo já reconheci que só te entregaram a chave do armário quando as traças estavam empanturradas.
O problema é o seguinte, usando uma analogia que eu sei que te agrada: puseste em campo, por dó ou dívida, uma legião de pernas-de-pau. Manda para o chuveiro! Olha que ruindade pega.
Como pode? Teu ministro da ginástica olímpica interditou a Daiane dos Santos com a desculpa de que ela deve prestar o serviço militar. Hem? E por que no ministério do tênis puseste um que não joga nem ping-pong, mas aposentou o Guga por decreto? Só faltou impor ao simpático manezinho uma licença-maternidade...
No ministério-dos-esportes-que-não-dão-voto puseste um afoito que falou em botar laxante na água dos adversários. Daí, felizmente o mandaste embora e nomeaste um ponta-de-lança habilidoso. Mas ele anunciou que não vai entrar driblando defesa adentro para não destoar do resto da equipe. No ministério do café, almoço e janta a conversa é animada (sinal de que a bóia é fraca). Como se costumava dizer, “Assim não dá!”
Certo, acabas de assentar uma espécie de Paulo César Carpeggiani no ministério da merenda – alvíssaras! E Don Elias Figueroa garante a defesa do ministério do cofrinho. Mas por que se limitar aos poucos craques que tens à volta? Olha que os pernas-de-pau que investiste de poder estão mostrando a cara: mandam botar saibro na chuteira de qualquer um que se mostre jeitoso com uma bola no pé.
Em suma, companheiro, usando outra metáfora que te agrada e correndo o risco de descambar para o mau gosto, te digo que não tenho nada contra o amor solitário ou a abstinência, mas por que dar a chave do cartório a essa gente? Por que lhes dar o poder de proibir o amor à vera? Eles, que não fazem e não querem que ninguém faça? Se negam a sequer ouvir quem faz contar das delícias; só ouvem o coro lamurioso dos mirrados e baldios cuja delícia é empatar. Por que, se nunca foste um deles? Ou agora és contra o namoro? Eu, hem? Me inclui fora dessa!

O dedão, o dedo e outras grosserias

Publicada n'O Taquaryense em 29 de maio de 2004.

Dileto e bem-educado Fidel, que coisa esse fichamento policial dos cidadãos norte-americanos que entram no Brasil! Fotografia segurando tabuleta com data, dedão lambuzado de graxa para as digitais. Pensei: que ruim, não tem sentido. Porém, não é motivo para alguém sapatear, gritar ou esmurrar. É a lei, acata-se.
Vi no jornal que vários foram mandados de volta por negar-se a passar pela romaria, e um até foi preso – um piloto que na hora de tirar a foto segurou a tabuleta mostrando acintosamente “o dedo”, num gesto obsceno que não preciso desenhar (poupo meus preciosos leitores). Isso me trouxe à lembrança acontecimentos da infância e da juventude.
Num certo dia da meninice, na praia, um garoto conhecido, eu e mais alguém passamos boa parte da manhã pescando peixinhos com uma rede de saco de aniagem. Bacana, gostei. Mais para o fim da manhã, havia uma boa quantidade de peixinhos para uma fritada.
Inocentemente eu perguntei: vamos dividir? “Dividir, nada. Isso é tudo meu”. Não deu raiva, pois eu nem saberia o que fazer com os peixes e se lembro bem a rede era dele, afinal. Perguntei por perguntar, nem tinha grande interesse. Apenas me parecia a coisa mais natural do mundo fazer aquela partilha.
Pano rápido. Uns dez anos depois, me pedem para ligar para o mesmo garoto para saber de um certo papel de uma negociação, que ele deveria ter enviado pelo correio. “Ué, mas eu já mandei, tu estás louco?” Não, eu não estava louco, nem entendi por que a resposta tinha um vezo de rispidez. Talvez fosse o jeito dele. Deixei para lá, naquele momento.
Passa dia, tal e coisa, aperta de novo, venho a descobrir que não somente o papel não havia sido enviado, mas também que o motivo eram uns pilas a mais que ele ganhara omitindo detalhes do negócio, prejudicando o parceiro (o tal que me pedira para ligar). Achou que se fazendo de besta iam-se esquecer do papel. Conheciam-se havia décadas, acabou o relacionamento ali. Que coisa, hem, Fidel?
Volto aos fichados. Estou bastante seguro de que os cidadãos norte-americanos foram informados de que o procedimento incômodo e, para alguns, deveras grosseiro, devia-se à reciprocidade de tratamento – o governo deles faz o mesmo com os brasileiros. Na verdade faz bem pior e isso é só um detalhe num rosário de ruindades que não vou desfiar aqui – a leitora que negue a ruindade, se quiser.
Um amicíssimo meu (que nada tem de comunista, caro leitor) gostou da nossa política. É um recado para quem pensa que ainda somos aquela imensa tribo simpática e subserviente. “Nunca fizemos nada contra eles”, ele me disse. “Seqüestramos o embaixador deles”, obtemperei eu (de sacanagem). “Que prendam o Gabeira”, retrucou ele com um sorriso.
Quer dizer que o garoto mal-educado, avarento e agressivo não gostou da moeda de troca? Que vá amuar-se em casa. Por que tratar bem gente ruim? E quem merece – clamo a ti, ó leitor –, tem recebido flores?

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

É dos carecas

Publicada n'O Taquaryense em 22 de maio de 2004.

Fidel, a marchinha é antiga, mas bem conhecida: “é dos carecas que elas gostam mais”. Parece que as mulheres não concordam, mas há debates acalorados sobre o tema. É involuntária e tão comum entre os homens que, afinal, a calva é só uma característica.
Se é tão comum, não deveria causar qualquer conseqüência. Mas eu próprio experimento um certo espanto quando ouço alguém se referir a mim como “meio careca” – eu me considero meio cabeludo! Enquanto há um fio, há esperança.
Conheço um senhor de seus 50 anos, careca ampla e lustrosa, que mantém em seu escritório um retrato dos tempos da jovem guarda com uma vasta cabeleira. Aos que estranham, ele retruca: “Mas é assim que eu me vejo!” Que cara-de-pau! Pudera, Fidelito, que lhe tenham aplicado certo apelido quando apareceu com uma camisa de malha café-com-leite de gola rolê... (imagina a cena e vais entender; o pudor me interdita).
Mas há uma careca diferente da típica masculina e que não é voluntária nem involuntária; o fato é que é necessária. É um sinal de que a quimioterapia está funcionando e as células que se multiplicam muito rapidamente estão sendo barradas. Há esse efeito estético porque, entre as células normais, as cabeludas são das que mais crescem. Para as cancerosas pararem, elas também param.
Andei lendo coisas acadêmicas e populares sobre pacientes de câncer. Os que participaram de pesquisas dizem coisas preciosas: “eu tô com essa esperança de viver porque acho que vou dar algo também pros outros ainda”; “eu não me abalei quando descobri que estava com câncer, mas me abalei de ver como eles reagiram”.
Tem o clube do confessionário: “antes era farra, muita farra, não levava nada a sério”. Mas o máximo da honestidade eu achei nesta resposta para “o que é qualidade de vida para você?”: “deixa eu pensar um pouquinho...”
Parece que o câncer sempre existiu. Foi registrado pelo Hipócrates (aí por 300 A.C.). Galeno, outro batuta, desenganou seus pacientes – não havia muito a fazer aí pelos 150 D.C.
Michelangelo retratou um caso avançado de câncer no seio esquerdo da “Noite” (1524). Em seguida descobriram a célula; isto ajudou a evolução do tratamento para as mais de 100 doenças que respondem pelo nome de câncer, que algumas pessoas evitam, o que em nada ajuda. Chamar de neoplasia é um despiste inútil.
Entre os estudiosos atuais, Simonton diz que nenhum deficiente mental tem câncer, o que aviva a idéia de que condições estressantes podem estar no centro da causa. Ele vai além e diz que o câncer pode ser uma solução, uma saída (inconsciente) encontrada.
Então, Fidelito, a gente se pergunta: o que fazer com as feridas da alma? Se tudo o que se sabe é “nenhum fumo (passivo inclusive), alimentação saudável, vida ativa...”? Um abraço ajuda, então mando um dos fortes. E se eu soubesse como fazer o transplante, pegava a alegria da marchinha carnavalesca e entregava para todos os carecas.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Meia volta, volta e meia

Publicada n'O Taquaryense em 15 de maio de 2004.

Fidel, uma vez comprei um livro cujo título seria algo assim: “Como Confúcio pediria aumento?”. Foi pouco antes de voltar das terras distantes. Gostei tanto que cheguei a conversar com a autora, que me disse que uma versão brasileira estava a caminho. Isso foi há uns 3 anos e nunca mais.
A idéia era aplicar a filosofia oriental a situações caroçudas do trabalho cotidiano. Me encantou a simplicidade e iluminação das respostas para coisas como a pergunta do título e “Não parece certo que pessoas que não são íntegras estejam se saindo melhor do que quem faz a coisa certa. Por que elas estão tendo sucesso?”. Quem sabe um dia entro em detalhes, mas não é por isso que puxei essa conversa agora.
Uma idéia bem geral, que os iniciados nas coisas chinesas devem saber bem mas para a minha ignorância chegou a ser novidade, é que tudo são ciclos. Achei isso um bom argumento para regatear com os papos de velho que de vez em quando jogam na gente ou a gente mesmo vai montando (é duro admitir...).
“No meu tempo as moças se davam mais ao respeito”. É, e tinham dono, passavam do pai pro marido e alguns nem eram bons. “Os jovens eram mais respeitosos e não debochavam dos mais velhos”. Claro, eram os mais velhos que abusavam (e claro que isso não se aplica a todos os velhos velhos, assim como os novos novos não são todos mal-educados).
E “não se vivia com medo da violência”. Justo, desde que as idéias ou alguma combinação rara de vontade, iniciativa, cor da pele, lugar, sexo, comportamento etc. não fosse por demais inadequada. Caso fosse, estava-se frito ou se teria de rebolar muito. As artes e as letras devem muito a esses movimentos rebolativos.
Deves me achar uma espécie de Gardel com seu Cambalache, dizendo que la vida fue y será una porquería. Largo de ser exagerado, então. Já deu para passar a idéia de que as coisas vão e vêm, dinheiro entra, dinheiro sai etc. Mas ainda assim...
Fica-se com a impressão de que este novo milênio tem sido mais de perdas do que de ganhos. O leitor aí, com as suas, sabe do que eu falo. Mesmo quem tem uma vida supimpa reconhece a dureza à volta e estamos todos tentando nos adaptar, trans-por, sobre-viver.
Como dona Zoraide, que não se conformou de ficar atrás do neto de 5 anos em todas as questões informáticas. Foi à luta: estudou, clicou, cutempeistou, escaneou, becapeou. Cheia de coragem, pediu ao netinho que a sabatinasse, e foi assim: “Vó, o que é que é redondo, tem duas letras, começa com c e tem um furo no meio?”
Dona Zoraide passa bem, o desmaio não foi nada. Apenas recebeu uma prescrição de remédios e caminhadas regulares. Mas não chegou a ouvir o neto esclarecer: “é CD!”.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Recuerdos de 2004

[Publicada n'O Taquaryense em 20 de março de 2004]

Fidel, as previsões para 2003 foram acompanhadas com agudo interesse por alguns leitores. Houve quem apontasse curiosas semelhanças com eventos que efetivamente aconteceram, mas eu fui claro e reitero que qualquer semelhança terá sido coincidência.
Agora, olha só: reconheço uma frase do Otto Lara Resende que por certo estava no meu subconsciente quando previ 2003: “Neste Brasil até o passado se tornou imprevisível”. Achei aqui, entre antigos alfarrábios. É a tal Lei do Lavoisier: nada se cria, tudo se copia, inclusive minhas parcas idéias.
Para falar a verdade, não me surpreende que o assunto “previsões” capte alguma atenção, pois muita gente gosta de elucubração. Só que antecipar o passado, para o vidente, é bem mais difícil do que projetar o porvir. É essa imprevisibilidade do pretérito. Eu fiquei demolido com tanto esforço futurista.
Então, já que hoje quero sossego, invisto numa retrospectiva de 2004, munido agora de envelopes de aspirina amassados, servindo de búzios, pois os de engov já estão obsoletos. Vamos lá, recordar é viver.
Em 2004 os preços aumentaram, assim como o trabalho. As grandes empresas encerraram o atendimento ao consumidor feito por pessoas, colocando no lugar o atendimento automático por telefone, o que racionalizou muito o jeito de se perder tempo e não reaver o dinheiro.
Eles firmaram jurisprudência no exercício do sagrado direito de ordenhar o “mercado” (isto é, nós). Para um banco estrangeiro, não existe mais chamada gratuita, nem para comunicar roubo de cartão de crédito. Para mim, o nome do banco virou four-letter word (o palavrão deles).
O sistema político brasileiro continuou se aperfeiçoando em 2004. Orgulho nosso, temos mandatários que promovem os sublimes valores familiares (em geral, promovem gente da própria família). O amor é lindo: é filho assessor, filha no gabinete do amigo, o tradicional cunhado (afinal, é parente?)... Até sogra tem boquinha, sempre sem concurso.
Os governos brasileiros continuaram mesclando a tenacidade e competência de uns poucos homens e mulheres de visão com a atrocidade dos de sempre, garantindo nosso rumo às trevas. Que ano, Fidelito! Mas não foi em 2004 que entramos definitivamente ralo abaixo e fossa adentro.
Fechamos o ano preservando o credo nacional de que é melhor todos pagarem pelo erro de um do que cada um ser responsável e imputável. É muito mais democrático. O buraco fez quebrar o carro? Ninguém é culpado. Pagou o imposto mas ainda aparece como devedor? É assim mesmo.
Já no fim de 2004, perguntei às gotas d’água quem foi a responsável pela enchente. “Eu não! Eu não! Eu não!” A irresponsabilidade em grupo é muito mais democrática.
Paciência, o jeito é todo mundo pagar essa nova “taxa para reaparelhar o reaparelhamento destruído pela enchente”; é muito mais democrático. O governo é que nem flanelinha: cordial, a princípio não-violento. Não dá nada em troca do nosso dinheiro, mas pagar sem bufar ainda é a saída mais barata. Que venha 2005, se for homem!

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Previsões para 2003

[Publicada n'O Taquaryense em 31 de janeiro de 2004]

Caríssimo Fidel, não entendeste mal. Resolvi escrever minhas previsões para o ano passado porque não vejo grande mérito em escrever prognósticos que ninguém vai querer bater com os fatos (“ninguém” são os órgãos de imprensa que todo ano vem com a mesma lengalenga).
Pai Mário abre o cafofo e joga seus búzios (na verdade são envelopes de engov amassados, dá no mesmo). Já advirto: também não admito que me cobrem as previsões. São verossímeis demais e eu não sou besta de querer arrumar encrenca. Qualquer semelhança dos personagens das previsões com pessoas ou organizações terá sido mera coincidência.
Começo com a que me é mais cara, literalmente: no décimo-primeiro mês, na ilha capital (só no Brasil são três capitais em ilhas; essa vagueza é um dos principais charmes das previsões e também um recurso de Pai Mário para jamais errar), emergirão seres do oceano da tolice que, com criatividade, deixarão 300.000 pessoas sem luz por três dias. Serão secundados por seres homeomorfos da companhia de águas, que nunca pensaram em instalar um gerador de energia e, assim, as 300.000 pessoas ficarão também sem água.
Tem mais. Os seres fritarão a ponte (!) que liga a ilha ao continente, complicando o trânsito por semanas. Jornalistas independentes produzirão um relato competente mas não conseguirão vendê-lo a qualquer órgão de imprensa.
Prevejo que não conseguirão publicar nem como matéria paga, nem que juntem as economias dos parentes até o 48º grau. Prevejo que os responsáveis promoverão a primeira entrevista muda do rádio brasileiro – uma loucura, Fidelito! Mais ou menos um mês depois, conseguirão provocar outro incêndio no mesmo lugar, quase igual – incrível! Justiça seja feita, o “gato” que farão em alta tensão para a luz voltar será coisa de bravo.
O ano iniciará com um novo líder no comando da nação brasileira. Seus inimigos irão se acostumar, seus seguidores irão se decepcionar, e todo mundo haverá de concordar que ele pegou a coisa para lá de precária. Alguns comemorarão um tal de baita superávit primário, só que pouca gente sabe que depois de pagar o juro isso vira déficit. Considerando que há muito chegamos no último buraco da cinta e já fizemos vários outros para a calça não cair, sempre devendo mais, dá para desconfiar o rumo que tomamos? Mas não chegaremos lá em 2003, ainda tem um tempinho.
Já no crepúsculo do ano, prevejo que encontrarei 180 novos e-mails após 3 dias de viagem, isso já considerando o filtro instalado por meu competente administrador de sistemas. Só 5% me interessam, mas outros 5% pelo menos são de temas de interesse profissional. Grande parte dos 90% de lixo oferece produtos para aumentar partes da anatomia que, francamente, não carece. Mas é feio a gente se gabar, então paro por aqui.

‘Cença...

Publicada n'O Taquaryense em 10 de janeiro de 2004.

Fidel, se o Henfil escrevia para a mãe, se tanta gente publica cartas, porque não posso publicar as minhas para meu interlocutor mais pensativo e ponderado? Alguém me recomendou esclarecer que não és cubano (ora, quem pensaria isso?).
Confesso que o convite para publicar n’O Taquaryense revolveu-me em orgulho e insegurança. Insegurança porque impõe a necessidade de me apresentar e de me enturmar em uma plêiade de articulistas (e de leitores) à qual é um privilégio pertencer. Apresentar-se dói que nem aquelas redações “minhas férias” dos primeiros anos de escola, a gente tendo que dar explicação.
Como fazer? Não haveria um jeito prático de fazer de conta que já estou por aqui há algum tempo em vez de chegar com esta cara de migué, “não sou daqui, onde é que guardo essa mão”? Entrar de costas, quem sabe? (Mas nem no cinema isso funciona, é só uma piada inocente). Comentar algo em relação à “última edição desta coluna” e rezar para que ninguém note? (Mas sempre haverá um(a) inocente útil a importunar a redação, querendo a tal edição...)
Melhor confessar que sou novo aqui e me apresentar. Além de amigo do destinatário, cabe declarar que sou leitor assíduo d’O Taquaryense. Aliás, é o único jornal que leio regularmente. “Regularmente” é eufemismo, leio sempre (e os demais, quase nunca, mas não é hora de falar disso).
Conheço boa parte dos personagens noticiados. Para completar a apresentação, declaro que fiz um curso de redação oficial por correspondência e um curso de extensão sobre cometas (bonito de ver, no Planetário, em Porto Alegre, uma luazinha chispando o céu em alta rotação). Já dei minhas voltas na Lagoa Armênia e até já fiz carreata em Taquari há muito tempo, embora nunca tenha sido morador.
Para quem acredita que só o supérfluo é relevante, estou apresentado. É que nem caderno de recordação, já que falei nos primeiros anos de escola. Interessa é se “já foste beijado”, não o CPF ou a ortografia. Não faz mal que na hora de botar a cedilha bata um nervoso e saia “reçordacão”.
A parte do orgulho já é mais fácil de explicar. O segundo jornal mais antigo do Rio Grande, 116 anos, com impressão tipográfica montada à mão numa Marinoni adquirida junto ao velho Correio do Povo, em 1910, numa histórica cidade gaúcha, pequena, mas que tem três jornais... é a glória.
Fidel, fica combinado. Se o seu Plínio topar, vamos publicar essas mal traçadas. Tenho a crença de que, mesmo dirigidas a ti, as cartas podem interessar a qualquer um(a). Quem sabe até alcancem algum particular, algum assunto caro ou íntimo do leitor. Mas fico por aqui, até outra vez.