quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Recuerdos de 2004

[Publicada n'O Taquaryense em 20 de março de 2004]

Fidel, as previsões para 2003 foram acompanhadas com agudo interesse por alguns leitores. Houve quem apontasse curiosas semelhanças com eventos que efetivamente aconteceram, mas eu fui claro e reitero que qualquer semelhança terá sido coincidência.
Agora, olha só: reconheço uma frase do Otto Lara Resende que por certo estava no meu subconsciente quando previ 2003: “Neste Brasil até o passado se tornou imprevisível”. Achei aqui, entre antigos alfarrábios. É a tal Lei do Lavoisier: nada se cria, tudo se copia, inclusive minhas parcas idéias.
Para falar a verdade, não me surpreende que o assunto “previsões” capte alguma atenção, pois muita gente gosta de elucubração. Só que antecipar o passado, para o vidente, é bem mais difícil do que projetar o porvir. É essa imprevisibilidade do pretérito. Eu fiquei demolido com tanto esforço futurista.
Então, já que hoje quero sossego, invisto numa retrospectiva de 2004, munido agora de envelopes de aspirina amassados, servindo de búzios, pois os de engov já estão obsoletos. Vamos lá, recordar é viver.
Em 2004 os preços aumentaram, assim como o trabalho. As grandes empresas encerraram o atendimento ao consumidor feito por pessoas, colocando no lugar o atendimento automático por telefone, o que racionalizou muito o jeito de se perder tempo e não reaver o dinheiro.
Eles firmaram jurisprudência no exercício do sagrado direito de ordenhar o “mercado” (isto é, nós). Para um banco estrangeiro, não existe mais chamada gratuita, nem para comunicar roubo de cartão de crédito. Para mim, o nome do banco virou four-letter word (o palavrão deles).
O sistema político brasileiro continuou se aperfeiçoando em 2004. Orgulho nosso, temos mandatários que promovem os sublimes valores familiares (em geral, promovem gente da própria família). O amor é lindo: é filho assessor, filha no gabinete do amigo, o tradicional cunhado (afinal, é parente?)... Até sogra tem boquinha, sempre sem concurso.
Os governos brasileiros continuaram mesclando a tenacidade e competência de uns poucos homens e mulheres de visão com a atrocidade dos de sempre, garantindo nosso rumo às trevas. Que ano, Fidelito! Mas não foi em 2004 que entramos definitivamente ralo abaixo e fossa adentro.
Fechamos o ano preservando o credo nacional de que é melhor todos pagarem pelo erro de um do que cada um ser responsável e imputável. É muito mais democrático. O buraco fez quebrar o carro? Ninguém é culpado. Pagou o imposto mas ainda aparece como devedor? É assim mesmo.
Já no fim de 2004, perguntei às gotas d’água quem foi a responsável pela enchente. “Eu não! Eu não! Eu não!” A irresponsabilidade em grupo é muito mais democrática.
Paciência, o jeito é todo mundo pagar essa nova “taxa para reaparelhar o reaparelhamento destruído pela enchente”; é muito mais democrático. O governo é que nem flanelinha: cordial, a princípio não-violento. Não dá nada em troca do nosso dinheiro, mas pagar sem bufar ainda é a saída mais barata. Que venha 2005, se for homem!

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