sábado, 24 de janeiro de 2009

Bosta de minhas férias

Publicada n'O Taquaryense em 12 de março de 2005.

Fidel, esquece tudo o que eu escrevi. Coerência perfeita é coisa de carola. Não é porque eu disse “basta” que vou deixar de escrever sobre as minhas férias. É que estas realmente valem a pena contar.
Viajei para Sobril, um país fictício muito parecido com o nosso. O nome vem de sobro, árvore corticeira de características opostas às que o dicionário Aurélio atribui ao pau-brasil – incorruptível e duro.
A bandeira é parecida, só que em vez de “Ordem e Progresso” sobre uma faixa branca, tem “Com Jeito Vai” sobre uma banana. A língua que eles falam é também muito parecida com o português, mas não é português. Por exemplo, o cidadão trabalhador e pagador de impostos eles chamam de octário. Povo é octariado. Governo é sócio autoritário (SA).
O octariado adora o SA, tanto que trabalha a metade do ano só para sustentá-lo, recebendo quase nada em troca. Para felicidade do octariado, o presidente aumentou os impostos federais e, no estado do Sobril Meridional, o SA estadual também aumentou.
O SA estadual anterior tentou aumentar alguns em troca de desconto em outros, mas a oposição não deixou, porque não teria a menor graça. Imagina se é no Brasil, Fidelito – o povo ia para a rua bater panela! Mas lá eles gostam.
Também há empresários octários. Pagam impostos, dão nota fiscal, fazem alvarás – eu não entendo por quê. Isso é muito ruim, porque os octários, quando vão às compras, acham que a loja tem que dar nota. Por exemplo, na Ilha Mágica, lugar paradisíaco onde todos querem estar no verão, quase não há empresários octários, mas bastam uns poucos para o octariado alimentar o mau costume de implorar por uma nota. É uma cena triste de ver, porque eles resmungam, chateiam, mas não conseguem.
O povo sobrileiro é muito empreendedor. O octário que deseja abrir uma empresa costuma recorrer ao financiamento do FAT, que não é Fundo de Amparo ao Trabalhador, mas Família, Amigos e Tolos. Eles dizem que só razões do coração ou a tolice podem justificar o investimento numa nova empresa, com todos os alvarás, certificados, impostos regulares e inventados que virão.
Como em qualquer país, os políticos sobrileiros não têm uma fama lá muito boa. O octariado os aprecia tanto quanto aos ladrões e traficantes. Mas o detalhe interessante é que a democracia deles é perfeita: não só os supracitados podem roubar – qualquer mané pode!
Vê o caso do sócio toureiro (ST), Fidelito. É um sujeito que abana uma flanela para os motoristas que estacionam, como quem toureia. STs não são octários, não são responsáveis por roubos ou avarias, mas cobram dos octários que estacionam na rua. E eles pagam. Sorte dos ST que estão no Sobril e não aqui – seriam presos por vagabundagem e extorsão, né?
Mas o que me cortou o coração foi conhecer Tambor do Sobril, uma cidade maravilhosa, muito linda e muito violenta, e é fácil ver a razão: o tráfico de drogas movimenta alguns bilhões de dólares por ano. É só olhar para o luxo das favelas nos morros, que é onde vivem os traficantes, para entender o ódio no coração da pobre gente que mora em coberturas duplex nas avenidas à beira-mar. Mas ano que vem eu volto.

Basta de ‘Minhas férias’

Publicada n'O Taquaryense em 5 de março de 2005.

Fidel, já na carta que inaugurou esta coluna eu te falei o quanto achava penoso, no tempo do colégio, ter que atender à professora e escrever uma redação sobre as férias, todo santo começo de ano. Era embaraçoso, chato, pouco imaginativo. Um pé no saquinho.
Tanta coisa interessante e a rabugenta queria que eu contasse se tinha viajado de ônibus ou de carro. Mas professor é que sabe das coisas, né? Por isso é que, quando fui dar uma aula sobre chuva para uma turma de 2ª série, mandei sossegar o pirralho que quis falar sobre as primeiras chuvas na atmosfera terrestre, cheia de metano. Que pivete insolente!
Houve um certo março no qual, como sempre, a professora pediu uma redação sobre as férias. Que saco. Eu estaria mais disposto a relatar o campeonato de sumô de besouros chifrudos vencido no dia anterior. Quero dizer, o meu besouro é que ganhou. Não foi mole.
Para quem não conhece, o besouro chifrudo é um mini-rinoceronte com um baita chifre. Ou, para quem curte desenho animado das antigas, pensa no Tundro dos Herculóides – é muito parecido, só que o besouro chifrudo é preto e não cinza, não atira pelotas pelo chifre (infelizmente) e tem só 6 pernas.
Tive a consultoria do Chulé, meu amigo e headhunter de besouros. Ingenuamente, eu queria ficar com o maior dos três que encontramos no jardim, mas o conselho perito do Chulé me ajudou a selecionar aquele que mais vezes desvirou com o chifre a latinha emborcada com que o aprisionamos. Eu não ganharia o torneio com um besouro que desiste fácil! Mas atenção, jovem leitor: não vá matar o bicho no cansaço.
O sumô de besouros, mal comparando com os jogos de adulto, é um esporte caro, assim como o golfe e o iatismo. Precisa (além dos besouros chifrudos, hoje em dia raros) de um tubo de PVC que permita passar os besouros sem muita folga, no qual se faz um rasgo longitudinal de poucos milímetros para deslizar o chifre saliente. O comprimento ideal é de 10 a 15 cm (lembrem-se: é sumô, não maratona).
Funciona assim: colocam-se os besouros frente a frente no meio do tubo e vence quem empurra o outro para fora. Existe uma variante, o cabo-de-guerra de besouro chifrudo, no qual se amarram os chifres nas pontas de uma linha e vence quem conseguir arrastar o outro. Mas o sumô é muito mais empolgante, pois requer certa habilidade para evitar que os besouros escolham ambos recuar. É um segredo de negócio.
Devo confessar que não sei se os guris e gurias de hoje são aporrinhados com a exigência de uma dissertação sobre as férias todo início de ano. Mas que não carece, não carece. Tenho certeza de que há, no universo infanto-juvenil feminino, temas tão palpitantes quanto o sumô de besouros chifrudos.
É certo que os guris de hoje têm recursos que eu não tinha. A gente usava uma tecnologia analógica. Eram lupas (“raios laser”), réguas (catapultas), pedaços de cartolina (velas), palitos de picolé (mastros), chassis de carrinhos, fios e outras coisas que nem conto para que serviam com formigas, caracóis, lesmas e besouros. Nesses tempos politicamente corretos, a sociedade protetora dos animais pode querer meu couro, mas eu tenho esperança de que os crimes estejam prescritos.

Adeus 2005, ano velho

Publicada n'O Taquaryense em 29 de janeiro de 2005.

Fidel, lembras quando eu descobri o que disse o Otto Lara Resende (que no Brasil o passado é imprevisível), só depois de te fazer previsões sobre o passado? Pois fiquei sabendo que o físico Niels Bohr há muito já falou que é difícil fazer previsões, “principalmente sobre o futuro”. Ou seja, essa conversa de previsões sobre o passado e retrospectiva do futuro não tem nada de novidade.
Já que eu comecei a retrospectiva 2005 e me perdi no terrível tema da Educação, permita-me encompridar a conversa para rever como foi 2005 em outras áreas. Xovê... Tu que não lês jornal, adivinha o que o governo fez em 2005, Fidel: cobrou imposto de quem não paga e nunca pagou, ou sangrou mais os mesmos otários de sempre?
Dou algumas dicas: (1) cobrar de quem não paga requer levantar a bunda da cadeira, mas castigar no imposto dos otários exige só uma canetada; (2) quem já paga imposto não tem dinheiro para fazer lobby no Congresso, mas quem não paga tem bufunfa para comprar muita coisa; e (3) há coincidências interessantes entre listas de grandes sonegadores e listas de contribuintes de campanha (o problema é ter a vontade política de produzir a primeira lista e a imprudência de cruzar com a segunda).
Fico me perguntando, Fidelito... Esse povo que governa é mais velho do que eu. Será que quando eles foram crianças (se foram) o Esopo não tinha nascido? Esopo, um grego, aquele das fábulas... Tinha a da galinha dos ovos de ouro, que... Ah, deixa para lá. Se eles não entenderam a moral da história quando eram crianças, não sou eu que vou explicar.
Porém, louve-se a coerência do governo em descrer das fábulas, como a de se endividar e viver deitado eternamente em berço esplêndido. Os governos prévios, fabulistas, nos endividaram até a raiz dos cabelos. Este aí resolveu parar e pagar as contas. Foi meio complicado, em 2005, pagar tanta conta sem dinheiro para comer, morar, vestir e estudar. Mas tudo bem, uma coisa de cada vez.
O importante é que a parte mais carente do país não foi mais castigada do que já é. Sim, Fidelito, eu me refiro aos bancos. Em 2005, o governo poupou essas instituições beneméritas e necessitadas. Nada de pagar imposto para os fundos setoriais, por exemplo.
Aliás, falando em bancos, em 2005 eles continuaram tentando criar à força a certificação digital. Eu digo à força porque eles querem que o governo aprove da mesma forma que se fez no caso da urna eletrônica: brutal, ignorando olimpicamente o conselho dos peritos, esses chatos. Afinal, ninguém seria maldoso a ponto de fraudar a urna eletrônica ou burlar a certificação digital, né? Só a dona Regina, culpada de violar o painel eletrônico do Senado em 2001. Arrudão e ACM já estão de volta.
Só que os bancos têm uma motivação extra, que justifica tudo: se existir a certificação digital, eles deixam de ser responsáveis por eventuais fraudes e violações – a senha é só tua, nega; se saiu dinheiro da conta, azar o teu, o banco não tem nada com isso. Pensa na miséria em que vivem os bancos, Fidelito, comparada com o luxo em que vivem os cidadãos brasileiros, é verás que já era hora de pensar nisso. Afinal, já estamos quase em 2006.

Retrospectiva 2005

Publicada n'O Taquaryense em 22 de janeiro de 2005.

É, Fidel, eu acho que três semanas já é tempo suficiente para fazer uma avaliação do que foi este ano de 2005, tu não achas? Para que esperar dezembro, ou mesmo fevereiro? No fim do ano, todo mundo vai fazer retrospectiva. Não tem a menor graça e eu acho, mesmo, que já deu para sacar o "ano novo".
O Brasil continuou, em 2005, com muito sucesso na execução de tudo o que é meticulosamente planejado. O futebol demonstrou ser o melhor do mundo, a Educação continuou sendo uma das grandes tragédias da história da humanidade, as contas foram pagas, mas a miséria e a violência seguiram galopando.
Apesar de algumas ações para acabar com o futebol brasileiro – favorecimentos, viradas de mesa etc. – nunca mexeram no fundamental: ganha quem bota mais bola para dentro durante os 90 minutos, onze contra onze. Desse jeito, sem que uma comissão de notáveis escolha o vencedor, não vamos conseguir equiparar o futebol a outras áreas da vida nacional.
Na Educação, aí sim conseguimos manter o nível, pois tratamos do fundamental: o sistema é infalível, aniquila 100% das inteligências. Googleia aí, Fidel, pois está na web: “O Americano, Outra Vez”, do físico e prêmio Nobel (1965) Richard Feynman, que viveu no Brasil e fala algumas maravilhas, mas não deixa pedra sobre pedra quando o assunto é Educação. É uma boa leitura para um serão literário.
O professor Feynman descobriu, com grande espanto, que os alunos decoravam definições complicadas e passavam nas provas sem ter a mínima idéia do que realmente se tratava. Pensou que tinha 2 alunos sobreviventes do sistema brasileiro, mas antes de voltar aos Estados Unidos descobriu que um estudara na Alemanha e o outro, sozinho, no tempo da guerra, portanto não se podia dizer que era produto do nosso sistema educacional 100%.
Então reza comigo, Fidelito, até decorar: “Se a maior parte de uma turma é reprovada, o problema é o professor”. “Não existe uma resposta errada, cada resposta tem o seu sentido para quem responde”. E outras baboseiras que tu, como todo mundo, já ouviste.
E nunca, jamais colabora para implantar um sistema que meça sistematicamente o desempenho cognitivo dos alunos. Afinal, das várias dimensões da Educação, o desenvolvimento cognitivo é uma das poucas fáceis de medir. Há quem pense que é caro medir desse jeito (nosso atual governo, por exemplo) – talvez achem barata a nossa cavalgante ignorância.
Portanto, foi com grande alívio, regozijo eu diria até, que acompanhamos o investimento na Educação em 2005. Mais especificamente, o investimento na criação de factóides sobre cotas raciais, reforma da universidade e outras futricas. É uma revolução, “uma volta de 360 graus” (casualmente, essa também é a definição que a Física dá para “revolução”).
Pegar o problema da Educação pelos chifres é muito perigoso ou muito tedioso. Façamos, então, o fundamental: garantir que a escola continue punindo quem pensa e mantendo o mais absoluto sigilo sobre quem sabe e quem não sabe, quem aprende e quem não aprende. O ano de 2005 foi tão profícuo na área da Educação, Fidelito, que vou ter que deixar outros temas para depois. Vai fazer o tema de casa, guri!

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Para que notícia?

Publicada n'O Taquaryense em 15 de janeiro de 2005.

Fidel, eu disse quando estreei nestas páginas que leio o Taquaryense quase sempre e os demais jornais quase nunca. É porque a função da imprensa, se algum dia foi informar, há muito deixou de ser. Hoje é muito mais entreter, mistificar e confundir. Tanto que criaram o termo “infotenimento”.
Não faltam exemplos de invenção jornalística. Lembra da última campanha presidencial, quando um grande jornal noticiou um comício do candidato José Serra que fora cancelado? E deram detalhes, “relataram”... Nesse caso houve má fé sem maldade, foi só a publicação de uma “notícia” redigida previamente.
E nas Olimpíadas de 1994? Eu estava lá e assisti à não-cobertura norte-americana da rede NBC, que comprou os direitos de não transmitir os jogos. Torci pelo Xuxa, o Fernando Scherer, na final dos 50 m nado livre. Pois em toda a transmissão só se pôde ver o russo Popov, que afinal ganhou, o nativo, que foi prata, e no final o enquadramento perfeito de duas bandeiras, subindo na cerimônia de premiação.
Nem o Xuxa, que ficou com o bronze, nem a bandeira brasileira, nem qualquer dos outros competidores apareceram. Isso é que é iludir com organização e alta tecnologia. Isso é que é primeiro mundo. A tecnologia avança, tudo se automatiza e fica claro quanto era tola aquela idéia de que “no futuro a vida será uma beleza e todo mundo viverá em férias”.
Comparando os dois casos, a diferença está no nível de competência na prestidigitação dos “fatos”. E isso é comum, aceito, “normal”. Se não fosse assim, o grande jornal que eu citei cairia em desgraça depois de publicar uma manchete “Governo Lula vai acabar com o Provão” com um texto que dizia exatamente o oposto. Bom, pelo menos eles acertaram no resultado, pois foi o que o governo acabou fazendo.
Essa tolerância com a mentira, ou até a sua exaltação como boa técnica, é o que me faz preferir as análises, crônicas e editoriais. Pelo menos eu sei que é opinião. As “notícias” são furadas e é só desgraça.
É como disse o físico César Lattes ao Jornal da Unicamp: “A leitura do jornal toda manhã é um ato de masoquismo. Acho que qualquer pessoa com um pouco de visão, ao ler essas notícias, deve ficar desesperançada. Eu, pelo menos, estou. Vocês não?”
A liberdade de imprensa foi criada pelos norte-americanos e sepultada pelos próprios. É a evolução. Foi-se entendendo como funciona e foram-se profissionalizando os jeitos de meter coisa na cabeça do povo, mostrar, ocultar.
É o jeito de lidar com a opinião pública, que já há muito tempo o escritor Oscar Wilde qualificou de “uma tentativa de organizar a ignorância das pessoas e elevá-la à dignidade da força física.” E tem gente especializada no negócio de fazer a opinião pública. Não é importante relatar ou analisar objetivamente os fatos, o importante é dar ibope, fazer marola.
Há uns anos, aqui onde eu moro, acompanhei de perto um evento de ciência, tecnologia e política que teve um ministro, o governador e o reitor da universidade, além de dirigentes de agências governamentais de 12 países. Claro que a imprensa recebeu um belo release. No dia da inauguração, o tema de um jornal matutino da TV local foi “Reiki para cachorros”.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Fim dos presságios para 2004

Publicada n'O Taquaryense em 8 de janeiro de 2005.

Fidel, mizifio. Pai Mário tem mais algumas previsões do ano passado para suncê. Me alcança o charuto e a cachaça que as primeiras previsões são sobre sumiços: Bin Laden continuará amigo oculto do Jorge Bucha, que só assim vai finalmente ganhar uma eleição. Não será encontrada, ainda, aquela renda de um jogo do Vasco que o deputado Eurico Miranda levou para casa e teve o azar de ser assaltado. E os desaparecidos da ditadura vão continuar desaparecidos, pois parece que nem 30 anos depois dá para falar do assunto.
Aliás, mesmo considerando que os familiares têm o direito de saber dos seus mortos, desconfio que, afinal, não será interessante para ninguém saber o que houve. Qual foi ou é o papel de muitas figuras conhecidas, quem animadamente promoveu barbaridades com financiamento público... Pode ser melhor não saber. Mas queimar documentos daquela época aberta e impunemente será mais uma façanha de quem sabe que está num país do penúltimo mundo.
Abu Ghraib, Beslan, Cornelius Horan... Não, não é boa idéia fazer um prognóstico de 2004 em forma de ABC. No A tem tortura, no B, o mal em si, no C, um bufão fundamentalista. O bufão promoverá uma injustiça e, ao mesmo tempo, a glória do Vanderlei Cordeiro de Lima, nosso maratonista que ficará mais famoso que o ganhador da medalha de ouro. É, fiquemos no C, que é mais suportável do que o A e o B.
Nas previsões domésticas, um marco: passará para o andar de cima um engenheiro e político hábil e influente. Levará um prestígio minguante e a pinta de folclórico, anacrônico e populista, mas honrado. Se for culpado de algo, será do fio de esperança criado ao desmantelar a fraude eleitoral, o atentado à democracia perpetrado em 1982 pela Proconsult e alguns senhores que até 2004 não terão arrancado os próprios olhos (moral e politicamente falando), como faria um homem honrado.
Na área da Educação, algumas universidades implantarão uma política de cotas raciais, econômicas ou sei lá. As gentes de opinião vão escolher entre ser a favor das cotas, coisa esdrúxula como nunca, ou ser contra e continuar não fazendo nada, como sempre, para mudar o quadro de privilégio de poucos e exclusão de muitos. Pai Mário não garante que alguém vá sair com idéia que preste.
É garantido, Fidel: não será em 2004 que o Brasil inicia a revolução que nos dará um sistema educacional ruim em algumas décadas (o atual mata 100% das inteligências, segundo um estudo empírico do físico e prêmio Nobel Richard Feynman). É o que se concluirá a partir da pérola enunciada por um alto funcionário do Ministério da Educação (candidato ao prêmio Ig-Nobel?): “educar é transferir conhecimento”. A revista de maior circulação no país publicará isso entre aspas (eles não inventariam citação literal, inventariam?).
Perto do fim do ano, Pai Mário ouvirá no rádio um anúncio de colégio particular no qual “não será cobrado taxas” de quem se matricular cedo. Pai Mário profetiza que no colégio “não será feito concordâncias”. Nem verbal, nem nominal. Quanto à ortografia e à regência, Pai Mário não se arrisca a pressagiar. Vai ouvir o próximo anúncio para ver se o santo baixa e libera mais essa profecia.

Primeiros prognósticos para 2004

Publicada n'O Taquaryense em 1 de janeiro de 2005.

Querido Fidel, é chegada a hora em que botamos o dedo na moleira, reconhecemos culpas indevidas, ignoramos solenemente as mancadas de verdade e, cheios de fé, nos concentramos em augúrios e decisões e determinações de, dessa vez, fazer a coisa certa. Também é a época do ano em que alguns órgãos de imprensa, compadecidos de nós pela megera carestia que suportamos por um ano inteiro, nos oferecem sentimentalismo barato, baratíssimo.
Já que é assim, pai Mário não vai perder essa bocada. Mais uma vez abre o cafofo e joga seus búzios para trazer ao leitor suas previsões futuristas. Como já começa a ser tradição, as previsões não são para o ano que vem, porque isso qualquer bidu de terceira categoria faz, mas para o ano que passou, coisa muito mais difícil e arriscada.
Gurus de meia tigela limitam-se a previsões clássicas do tipo “um artista famoso vai morrer em 2004”. Pai Mário, ao contrário, joga às devas: um grande intelectual brasileiro, economista, criador e presidente da Sudene, vai para a outra dimensão em 2004. O de cujus será reconhecido, vai viver até para presenciar a ressurreição da Sudene, mas não para ler a manchete “Presos os ladrões contumazes que ordenharam a Sudene em sua primeira existência”.
Prevejo que em 2004 um juiz suspeito de vender habeas corpus para traficantes, depois de 11 meses afastado de sua função como ministro do Superior Tribunal de Justiça, será castigado pelo presidente Lula conforme a lei não escrita que os causídicos chamam de “não positivada”. Quero dizer que ele será sumariamente, dura lex sed lex, doa a quem doer, a-po-sen-ta-do. Com salário integral, dezesseis paus por mês até o fim da existência.
Pai Mário vê em sua bola de cristal que um ministro da Justiça de país sul-americano terá azar em 2004, aumentando sua já enorme coleção de desditas. Bafejado pela má sorte em 2002, com a incômoda coincidência de sua nomeação com a sustação do processo que apurava a morte do calouro de medicina da USP Edison Hsueh (o ministro defendia um dos acusados), entrou para a galeria universal das declarações infames em 2003, ao armar um beiço e dizer que "atirar galinha na prefeita é como jogar veado num homem" (quando um manifestante exaltado alvejou a prefeita paulistana com uma penosa).
Daí, em novo revés, o ministro vai liderar em 2004 a operação de desarmamento obrigatório dos cidadãos, uma ajuda à campanha presidencial de criação de empregos – no caso, o primeiro emprego de assaltante. E as coincidências não ajudam, mesmo. Foi advogado dos jovens brasilienses que queimaram o índio Galdino em 1997, os mesmos que uma juíza quis livrar a cara interpretando que o incêndio “não foi por querer” e depois furaram a fila da condicional (outros presos esperavam havia muito mais tempo), mas abusaram e voltaram à gaiola.
É muito azar do ministro, bem no momento histórico em que se começa a reconhecer o papel da impunidade no processo da miséria (sim, é um processo; Nelson Rodrigues já avisou que o subdesenvolvimento não se improvisa). Tem madeira aí, leitora? Três pancadinhas, por favor. Feliz 2004.

Caras novas na política

Publicada n'O Taquaryense em 18 de dezembro de 2004.

Caro Fidel, mencionei as eleições para prefeito e vereador na minha última carta, mas acabei falando de nomes de gente e de bicho (além de pensar nuns nomes feios para dizer ao tal deputado com nome de bicho). Acontece que o resultado das eleições merece uma prosa. Foram eleitos personagens muito interessantes.
Por exemplo, em Unaí, cidade mineira perto de Brasília, elegeu-se prefeito um dos irmãos acusados de mandante da chacina dos fiscais do Ministério do Trabalho que flagraram trabalho escravo por aquelas bandas. Só 6 meses depois do crime a polícia prendeu Norberto; mais 2 meses e foi preso Antério - esse é o nome do novo prefeito, que passou as 2 últimas semanas pré-eleitorais vendo o sol nascer quadrado.
O Tribunal Regional Federal concedeu habeas-corpus em 5 de outubro. Daí foi uma loucura, Fidelito: o herói escravocrata chegou de avião na cidade que o escolheu com 72,37% dos votos válidos, mas teve de sobrevoar a pista várias vezes até que a patuléia liberasse o campo de pouso. Uma emissora FM chamava para uma grande carreata. A cidade parou. O prefeito eleito chorou. Foi comovente.
Nunca tão atual (e literal, no caso) o Hino Farroupilha: povo que não tem virtude acaba por ser escravo. O novo prefeito terá a oportunidade de escravizar a população inteira, tão desejosa, pois a lei permite empossar quem ainda não foi condenado. Só me resta uma grande dúvida: quão ruim é o Geraldo, candidato derrotado pelo Antério?
Não vai me entender mal, Fidel. Todo mundo é inocente até que se prove o contrário. Mas desanima ver soltos os mentores de um crime tão primário. Os 4 pistoleiros contratados se hospedaram em hotel, depois um comparsa tentou acobertar, rasgando a folha de registro... Tanta incompetência não merece sair impune.
Mas nem tudo é de mau agouro. Lembra do deputado João Boquinha, da história que te contei? Aquele, aposentado, que não deu o emprego pro guri que acabou virando um grande empresário. Pois o filho dele, João Boquinha Junior, entrou na carreira política com uma campanha vitoriosa para vereador.
O clã dos Boquinha é de políticos tradicionais – moderados, jogam mais ou menos conforme as regras e entendem que, em política, o que vale é a versão. Clientelismo e tráfico de interesses, sim, mas nunca se verá um Boquinha envolvido nesses casos escabrosos de corrupção, compra de votos e outros horrores.
A compra de votos é outra área na qual a tecnologia esvaiu a poesia. No tempo do voto em papel, havia um esquema bem bolado, com recibo do vendedor. Funcionava assim: um cabo eleitoral votava com um papelzinho que fazia passar por cédula na hora de depositar na urna. Daí, levava a cédula para o candidato, que preenchia e entregava pro vendedor de voto, que a usava e trazia uma cédula nova, como comprovante para receber o pagamento.
O velho esquema não funciona com a urna eletrônica, mas o povo é criativo. Agora o candidato exige que uma criança acompanhe o vendedor de voto. Se o nenê disser que viu “a foto do tio”, o candidato paga. Talvez nem precisasse, porque o povo vende e cumpre a palavra. Já ouvi que “eu vendo o meu voto e voto mesmo, porque sou honesto”. Ah, bom!

Pastor alemão é bicho ou é gente?

Publicada n'O Taquaryense em 11 de dezembro de 2004.

Caro Fidel, agora que baixou a poeira das eleições é que eu começo a me inteirar sobre algumas notícias. Não tive muita paciência de acompanhar as análises sobre os eleitos, os novos campeões de voto e os decadentes ex-vereadores e prefeitos minguantes. Também perdi contato com o noticiário sobre os “anfiteatros mais engraçados do Brasil, o Senado e a Câmara”, no dizer do Millôr Fernandes.
É preciso desgrudar a parte trágica e conseguir achar a graça, a parte cômica das histórias desse pessoal que deputa. Por exemplo, leio que um tal Pastor Reinaldo apresentou um lote de nove projetos de lei. Dizem que todas as propostas do profícuo representante são igualmente relevantes – quer dizer, todas absolutamente inúteis. Porém, por algum motivo, uma delas ficou mais famosa: a que proíbe dar nome de gente a animais.
Eu não quero discutir o mérito da proposta. O que me intriga é: como definir o que é nome de gente e o que é nome de bicho? É preciso ser fundamentalista para simplificar uma questão filosófica tão vasta (e inútil) e chegar a uma decisão: “isso é nome de gente, isso é nome de bicho”. Ajuda, caro deputado, se te aliares à turma do Jorge Bucha e puseres a culpa no Todo-poderoso. Diz que Ele te deu a lista de quais são os nomes de bicho e os de gente (como fez com as tábuas da lei, entregues a Moisés).
Posso ou não posso chamar um kinguio, esse peixinho dourado originário da China (e não do Japão, como pensam muitos) de Chang? E se eu disser que Chang é o sobrenome mais comum na face da terra? Tudo bem, é só ver se está na lista do deputado. Ou... será que eu não entendi a notícia? Será que o tal Pastor Reinaldo é um cão pastor chamado Reinaldo?
Não, acho que não. Acho que é um bípede. Nesse caso, Freud explica: o deputado sofre com um não-resolvido trauma por ter nome de bicho (Pastor, não Reinaldo, que é nome de gente, inclusive de um amigo meu) e quer descontar na bicharada. Conheci uma galinha chamada Aguinalda e um gato chamado Carlos Alberto. Nenhum deles deputava, mas até que poderia ser, pois já houve vários políticos zoológicos – Incitatus era um cavalo senador, Cacareco foi um rinoceronte vereador e por aí vai.
Aliás, o Cacareco merece um parêntesis. Foi emprestado pelo zoológico do Rio para São Paulo, especialmente para inaugurar o zôo da terra da garoa. Chegou em 28 de setembro de 1958 e causou a maior briga: os cariocas o queriam de volta, os paulistanos se apaixonaram e se adonaram. Um ano depois, durante a campanha eleitoral, só dava Cacareco nas manchetes. Aconteceu o imprevisível: mesmo sem partido e com o domicílio em disputa, foi o vereador mais votado de São Paulo. Nenhum partido, contando todos os candidatos, somou os 100 mil sufrágios recebidos pelo quadrúpede.
Esse causo ilustra o fim da poesia do tempo em que o voto era escrivinhado num papelzinho. Hoje não dá mais para votar no Cacareco, só em candidato registrado, com número e foto. A tecnologia avança e a vida perde o sentido. Agora só falta proibirem a gente de xingar juiz ou buzinar para comemorar um gol. O governo não deixa mais a gente cometer nenhuma asneira. Só eles, que têm o monopólio da estupidez.

A universidade do crime

Publicada n'O Taquaryense em 4 de dezembro de 2004.

Fidel, já se ouviu muito por aí que nosso sistema penitenciário é uma verdadeira universidade do crime, porque pega um sujeito com uma formação básica – digamos, um arrombamento de veículo ou um furto – e o transforma num bandidão pós-graduado. Se for assim, eis uma universidade que parece cumprir muito bem o seu papel. E a outra?
Bom, tu sabes que a minha alma mater é a gloriosa Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Eu aproveitei bastante a oportunidade que me deu o povo pagador de impostos, de quem sou devedor. Dá para ter orgulho. Só não dá para pensar que se é especial, primícia da natureza, diferente do resto do mundo. E como eu acho que a UFRGS deve ter algo em comum com suas semelhantes, trouxe o que segue.
Não é caça às bruxas nem denuncismo (essas coisas só prosperam nas ditaduras), mas fiz as contas e achei que seria cultural anotar: devem estar muito perto de obter o diploma de médico os colegas-calouros de Edison Tsung Chi Hsueh. Em 23 de fevereiro de 1999, o bixo de Medicina da prestigiosa Universidade de São Paulo apareceu morto na piscina onde se realizara, havia uns pares de horas, a festa na qual os veteranos aplicaram o famigerado trote nos calouros.
Se alguém não lembra, refresque a memória: pelo menos duas centenas de estudantes estavam na Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz, da USP. Pessoas foram jogadas na piscina. Edison não sabia nadar. Apareceu morto. Ninguém viu nada. Muitos meses (66) depois, arquivaram o processo porque nada ficou provado. O episódio ficou conhecido como “O silêncio dos indecentes”, porque ninguém acreditou no lapso visual dos doutorandos, só se falava em ocultação, boca de siri, pacto de silêncio.
Centenas de pessoas em volta de uma piscina e ninguém viu um afogamento. Pior, ninguém viu Edison afogado na piscina. Foram todos para casa e o corpo apareceu no dia seguinte. Se alguém viu, temos omissão de socorro. Se alguém provocou, homicídio. E nesse caso os homicidas já estão formados, atuando como médicos. Mas não se sabe; não se pode condenar ninguém.
Quem sabe, Fidel, foi isso mesmo: ninguém viu o Edison se afogando, ninguém teve a intenção de matá-lo nem negou socorro quando se debatia. Essa alternativa, se nos alivia de pensar numa figura monstruosa que passou sem ser notado pela universidade mais famosa do país e pode já estar clinicando, talvez seja a mais trágica. Significa que não há um doutor Hannibal psicopata como o do Silêncio dos Inocentes, mas sim uma massa de 180 calouros e outro monte de veteranos do curso de Medicina, escola de cuidar de gente, que permite que um garoto forte, um deles, morra sem socorro ali embaixo do nariz de todo mundo.
Tenho muita vontade de acreditar que isso nunca aconteceria na UFRGS. Nem na PUC, nem na Unisinos, Ulbra, Unisc ou Univates. Nem na USP, cuja turma de Medicina de 1999 se fez diferente das outras. Alguns dizem que a tragédia os fez melhores médicos, mais atentos ao sofrimento humano. Tomara que sim. Enquanto isso fica a sensação de que a universidade pública é um mero amplificador da injustiça social, tirando dos pobres para dar aos ricos, protegendo a impunidade de quem é bacana.

O inominável II

Publicada n'O Taquaryense em 20 de novembro de 2004.

Fidelito, fiquei te devendo o curriculum vitae completo do inominável porque, de tão grande que é, parece a ficha corrida de alguns deputados. Nem o “saudoso” ex-deputado Hildebrando Paschoal, o da motosserra, é tão falado. Mas retomo o assunto porque é um investimento cultural que eu faço, para ilustração dos leitores.

Lá vai: um cafundó, lugar ermo, é comumente chamado inominável-de-judas, -do-mundo ou -do-conde. No Nordeste, a cachaça, quando servida com rodelas de limão e sal, é inominável-de-jegue. Há uma trepadeira ornamental rotulada de inominável-de-cachorro, também conhecida como erva-de-cabrita.

Uma pessoa que faz de conta que não quer algo, mas no íntimo anseia pela coisa está fazendo inominável-doce. Quem está apavorado está com o inominável na mão. Nos jogos infantis, a técnica mais primária de segurar a bolinha de gude se chama inominável-de-galinha. Por falar em criança, um precursor da fralda descartável, quando ainda só havia pano para aparar a produção dos nenês, é conhecido pelo inominável com o sufixo -eiro.

O vaga-lume ou pirilampo também é apelidado inomináveldelume (assim, tudo junto sem tracinho). Falando em bicho, quem requisita uma vantagem indevida ou abusiva ouve um “no inominável, papagaio!”, em alusão a uma famosa anedota na qual o adorável psitacídeo falante se dá mal. Mas aí já estamos no campo do chulo. Voltemos à arena respeitável.

Ou tentemos voltar. Porque eu mesmo, sem querer, expus publicamente o inominável. Foi há uns pares de anos, quando ofereci um curso de extensão a funcionários e professores universitários interessados em aprender a usar a internet, que era novidade. Criamos e-mails, lista de discussão, navegamos e coisa e tal. Ali pela metade do curso resolvi tirar a temperatura, para ver se todos estavam dominando a coisa.

Mandei uma mensagem para a lista, isto é, para todo mundo, com o assunto “Olá, como vai o curso?”. Pois a janelinha onde aparecem as mensagens mostrou, para todos os cursantes, a última palavra do campo assunto cortada ao meio.

Podes imaginar o constrangimento. Ou o grupo era muito pudico ou tinha por mim uma grande afeição e quis me poupar do vexame, pois nunca, nesses anos todos, ouvi qualquer menção ao episódio. Foi como se não houvesse acontecido. Gente próxima, que não precisava ter cerimônia, me diz que “não, não lembro; foi?”

Talvez a aparição mais respeitável do inominável seja no papel de símbolo químico do cobre, que é internacional. Também global é a abreviação de polegada cúbica, inominável in. E ainda tem o .inominável, sufixo que representa os domínios cubanos na internet, da mesma forma que o Brasil tem o .br.

E olha, Fidel, que essas coisas estão no dicionário. Se estão lá é porque o inominável deve ser importante, ou Pablo Neruda não teria escrito a Ode ao Dicionário chamando-o de celeiro do idioma. Isso tudo mostra a importância do inominável nas nossas vidas. Ali está ele, o desprezado nas rodas elitizadas, o “terceiro olho” que todos têm, como a nos lembrar do lado ridículo da condição humana.

O inominável

Publicada n'O Taquaryense em 13 de novembro de 2004.

Prezado Fidel, depois de te falar sobre o olho, aqui por essas mal traçadas, tive a impressão de haver sido superficial e que haveria muito mais a dizer sobre o olhar e a visão. E deve haver, só que meu pensamento divagou, associou, uma coisa leva à outra e o assunto de hoje pode ter algo a ver com olho, mas não exatamente com a visão.

Quero te falar sobre um monossílabo muito injustiçado no nosso país. Pessoalmente não me escandalizo, mas há um bruto preconceito contra ele. Temendo ferir ouvidos mais sensíveis, evito pronunciá-lo. Falo daquela coisa que, tal como CD, representa algo que começa por C, é redondo, tem duas letras e um buraco no meio. Vou chamá-lo, então, de “o inominável”.

Vê que eu digo em nosso país e não em nossa língua, pois na terra dos avós goza da maior liberdade, para não dizer prestígio. O maior exemplo é a letra Q, que eles pronunciam como o inominável. Nosso herói freqüenta as rodas de conversa lusitanas com toda a naturalidade. Como ensina Mário Prata, no livro sobre sua vida portuguesa, “vou levar o puto para tomar uma pica no inominável” quer dizer “vou levar o guri para tomar uma injeção nas nádegas”.

Na academia, o inominável aparece como sigla de colite ulcerosa em artigos científicos d’além mar, sem o menor pudor. Em sociedade, é comum dizer à visita que chega: “sente seu inominável por aí”, mostrando alguma poltrona. Até o (suponho) vetusto Tribunal da Relação de Lisboa, em seus acórdãos, usa acintosamente o inominável como código (vide processo 9337/2004-8) e transcreve declarações de um réu que sugere a um agente público depositar certo cartão no inominável (processo 640/2004-3).

No blog português Pandora’s Box eu encontrei o anúncio da criação de um certo Cadastro Único, abreviado podes imaginar como, que livraria os portugueses de decorar uma série de números de documentos. O inominável teria 1001 utilidades. Por exemplo, um gerente de banco diria ao cliente que pede empréstimo: “vou ver o seu inominável” (para certificar-se de que o requerente não tem o inominável sujo). O vendedor diria: “Ponho no seu inominável?” ao emitir o boleto de compra.

Mas, claro, Fidelito, que isso é piada dos blogueiros. E se tu não sabes o que é blog, é uma espécie de porta de banheiro cibernética em que todo mundo rabisca. Um muro na internet para todo mundo pichar. Um inominável-da-mãe-joana.

Aqui entre nós, até que o inominável tem uma tímida licença, mas só em uns poucos vocábulos e expressões. Ele ali se mete tal qual um penetra numa festa chique, que não é posto para fora porque, afinal, é simpático e a defenestração poderia ser mais escandalosa do que a presença indevida.

Por exemplo, quem é um estudioso aplicado é chamado inominável-de-ferro, ou cê-dê-efe. Uma coisa na qual todos se metem é referido como inominável-da-mãe-joana, como é o caso dos blogs que eu falei. Um sururu, furdunço, conflito no qual se envolvem várias pessoas é chamado inominável-de-gato.

As aparições do inominável são tão numerosas que eu cansei. Antes de te falar mais sobre o currículo dele, vou fazer uma sesta e volto na próxima, pois o assuntinho rendeu.