quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

A universidade do crime

Publicada n'O Taquaryense em 4 de dezembro de 2004.

Fidel, já se ouviu muito por aí que nosso sistema penitenciário é uma verdadeira universidade do crime, porque pega um sujeito com uma formação básica – digamos, um arrombamento de veículo ou um furto – e o transforma num bandidão pós-graduado. Se for assim, eis uma universidade que parece cumprir muito bem o seu papel. E a outra?
Bom, tu sabes que a minha alma mater é a gloriosa Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Eu aproveitei bastante a oportunidade que me deu o povo pagador de impostos, de quem sou devedor. Dá para ter orgulho. Só não dá para pensar que se é especial, primícia da natureza, diferente do resto do mundo. E como eu acho que a UFRGS deve ter algo em comum com suas semelhantes, trouxe o que segue.
Não é caça às bruxas nem denuncismo (essas coisas só prosperam nas ditaduras), mas fiz as contas e achei que seria cultural anotar: devem estar muito perto de obter o diploma de médico os colegas-calouros de Edison Tsung Chi Hsueh. Em 23 de fevereiro de 1999, o bixo de Medicina da prestigiosa Universidade de São Paulo apareceu morto na piscina onde se realizara, havia uns pares de horas, a festa na qual os veteranos aplicaram o famigerado trote nos calouros.
Se alguém não lembra, refresque a memória: pelo menos duas centenas de estudantes estavam na Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz, da USP. Pessoas foram jogadas na piscina. Edison não sabia nadar. Apareceu morto. Ninguém viu nada. Muitos meses (66) depois, arquivaram o processo porque nada ficou provado. O episódio ficou conhecido como “O silêncio dos indecentes”, porque ninguém acreditou no lapso visual dos doutorandos, só se falava em ocultação, boca de siri, pacto de silêncio.
Centenas de pessoas em volta de uma piscina e ninguém viu um afogamento. Pior, ninguém viu Edison afogado na piscina. Foram todos para casa e o corpo apareceu no dia seguinte. Se alguém viu, temos omissão de socorro. Se alguém provocou, homicídio. E nesse caso os homicidas já estão formados, atuando como médicos. Mas não se sabe; não se pode condenar ninguém.
Quem sabe, Fidel, foi isso mesmo: ninguém viu o Edison se afogando, ninguém teve a intenção de matá-lo nem negou socorro quando se debatia. Essa alternativa, se nos alivia de pensar numa figura monstruosa que passou sem ser notado pela universidade mais famosa do país e pode já estar clinicando, talvez seja a mais trágica. Significa que não há um doutor Hannibal psicopata como o do Silêncio dos Inocentes, mas sim uma massa de 180 calouros e outro monte de veteranos do curso de Medicina, escola de cuidar de gente, que permite que um garoto forte, um deles, morra sem socorro ali embaixo do nariz de todo mundo.
Tenho muita vontade de acreditar que isso nunca aconteceria na UFRGS. Nem na PUC, nem na Unisinos, Ulbra, Unisc ou Univates. Nem na USP, cuja turma de Medicina de 1999 se fez diferente das outras. Alguns dizem que a tragédia os fez melhores médicos, mais atentos ao sofrimento humano. Tomara que sim. Enquanto isso fica a sensação de que a universidade pública é um mero amplificador da injustiça social, tirando dos pobres para dar aos ricos, protegendo a impunidade de quem é bacana.

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