terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Guerra particular, estrago geral

Publicada n'O Taquaryense em 2 de abril de 2005.

Caro Fidel, tu lembras do bafafá envolvendo o cineasta João Moreira Salles, lá por 1997? Ele andava pelos morros do Rio com o traficante Marcinho VP (famoso desde que o cineasta Spike Lee pediu sua autorização para gravar um clipe do Michael Jackson no Morro Dona Marta).
VP foi morto na cadeia em 2003. Existe um homônimo por aí, a leitora não se confunda. Segundo o ex-chefe da polícia carioca Hélio Luz, o Marcinho do Dona Marta era só um figurante no palco do crime, um falastrão que foi confundido com o outro, esse sim, cruel e temido, e deixou pegar o apelido VP. Ou seja, o amigo de Salles seria falsificado. Vai saber...
João chegou a ser indiciado pela polícia civil carioca, acusado de favorecer o traficante, a quem pagava uma bolsa em dinheiro em troca de contar a história dos morros. Para João, era uma tentativa de afastar alguém do crime. Ingenuidade demais? Não sei. Só sei que não se pode culpá-lo pelo crime no Rio, como fez certo governadorzinho.
Naquele tempo, o Rio empreendia uma operação de guerra contra o tráfico, premiando os policiais que matavam mais bandidos. O lema era “atire primeiro, pergunte depois”. Não deu certo contra as drogas e aumentou o tráfico de armas, inclusive da polícia para os bandidos. João criticara essa política. O indiciamento seria uma vingança do governo.
A coisa toda fica mais interessante quando se assiste ao resultado das andanças de Salles e Kátia Lund pelas favelas cariocas: o documentário Notícias de uma Guerra Particular (1999). O filme consegue driblar a falta de destreza mental da maioria das discussões sobre violência. Não sataniza polícia nem bandido, mostra de forma bem didática por que a coisa é como é. O título vem da entrevista com um jovem policial: ele diz que há uma guerra particular entre polícia e tráfico, só que o povo morador fica no meio do tiroteio.
É chato e inútil ficar berrando “que barbaridade”, então só conto um trecho. O ex-delegado Hélio Luz faz uma análise bastante elucidativa. Ele descrê da história de que o tráfico substitui o estado, dizendo que não há competência para tanto. Com gente semi-analfabeta, o tráfico só consegue fazer algum assistencialismo (o que às vezes é mais do que faz o estado, penso eu).
Também faz perguntas: Para que produzir fuzil hoje? Para que uma fábrica de armas na Suíça ou nos EUA faz isso? Por que não fecha? O povo quer uma polícia que não seja corrupta? As primeiras respostas são fáceis, a última ele facilita: uma polícia honesta executaria mandado de busca e apreensão na zona sul do Rio, em vez de só invadir casa na favela.
O agora deputado estadual conta uma história pitoresca dos tempos de delegado (parecida demais com a que eu escutei de um delegado do interior). Começando a carreira numa cidade pequena, prendeu bandidos, ficou popular, convidado em eventos sociais, jurado em concurso de miss.
Um dia, um segurança de supermercado bateu num garoto que roubou. Hélio autuou os dois. O gerente virou fera: Como é que tu me fazes uma coisa dessas? Nós somos de bem! Mais adiante, um fazendeiro cometeu homicídio e Hélio prendeu. De figura simpática e prestigiada na cidade, virou persona non grata.

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