Publicada n'O Taquaryense em 27 de maio de 2006.
Caro Fidel, não deixa jamais que me resgatem a cidadania. Olha dona Guilhermina: pessoa fina, amabilíssima – até o dia em que tentaram resgatar a dela. De família culta, professora de português, membro da academia estadual de letras, poeta, empresária, negra, socialite, elegante. Andava de bengala (recuperava-se de um acidente com seu Volvo automático).
Num desses dias, sem poder dirigir, saiu de táxi. Na volta, quis andar um pouco, para espairecer. Por azar, enfiou o salto do sapato numa fresta dessas feitas pelo Departamento Municipal de Avacalhação Urbana (DMAU). Quebrou o salto do pé esquerdo, o da perna machucada.
Força na bengala! Só que, mal sustentado pela bengala, empurrado pela perna direita, o corpo se inclinava perigosamente ainda mais para a esquerda, onde não havia ponto de apoio, mas só e apenas uma grande cratera junto ao meio-fio (aberta, provavelmente, pelo mesmo DMAU).
Havia água da chuva no big buraco, mas era só o excipiente, digamos assim. A essência daquele xarope era o esgoto doméstico que, por economia de algum talentoso construtor, compartilhava dutos com o esgoto pluvial. Fedia.
Guilhermina requebrou num movimento gracioso e deu um arrojado salto com bengala em semi-parábola, em trajetória balística digna de questão de vestibular. Seu corpo estatelou-se no fundo da cratera, em decúbito dorsal, atolado numa nojeira marrom.
Um pedestre se apressou a acudir e soerguer Dona Guilhermina, com a ajuda de um taxista. Molhada, a blusa de seda esvoaçante colou no corpo e deu à vítima um jeitão de meretriz decadente, agravado pela maquiagem que escorria. Logo juntou gente – mais para peruar do que para ajudar, como é comum.
Guilhermina tossia e resfolegava quando surgiu Ana Cândida Wölfenbüttelmeister, ativista feminista onguista – dessas ongues, sabes Fidel? “Aninha” para os correligionários, “Bruxa” ou “Peste” para os (muitos) desafetos.
Aninha não viu nada, mas concluiu e passou a grasnar que os cavalheiros que amparavam Dona Guilhermina a estavam abusando “enquanto mulher”, que ia “estar chamando” a polícia, que aquilo era “um problema a nível de violência contra minorias, por ser mulher, negra, idosa, deficiente e prostituta”. Dona Guilhermina, a princípio perplexa, foi envermelhando de raiva.
Piorou quando chegaram policiais e, aos latidos de Aninha, desceram o cacete nos pobres ajudantes. A acidentada tentou defendê-los, mas só conseguiu tossir. Aninha seguiu cacarejando no gerúndio e arrastou a contundida pelo braço, dizendo: “Vou fazer uma colocação: vou estar resgatando sua cidadania”.
Nesse movimento, Aninha bafejou seu hálito de múmia e, suprema imprudência, expôs o pescoço. Possuída de ódio, a benigna empresária atacou a goela da onguista, esganando-a até arroxear e gritando: “Não me resgata a cidadania! Não me resgata a cidadania!”.
Aninha chegou a desfalecer. Custou 10 minutos de luta corporal para que os policiais conseguissem deter Dona Guilhermina e prendê-la por agressão, desacato e resistência à prisão.
Ela e Aninha passam bem. Com a intervenção de advogado, padre e prefeito, Dona Guilhermina pôde deixar a cela insalubre, com mil desculpas do delegado. Foi escoltada em alto estilo até sua casa. Resgataram-lhe a cidadania.